R. Lourau, Implicação e sobreimplicação [Sônia Altoé (org.), HUCITEC, 2004]

IMPLICAÇÃO E SOBREIMPLICAÇÃO[1]

Os usos epistemológicos, sociológicos, psicológicos da noção de implicação podem ser rastreados, por exemplo, em Bastide (1950), Piaget (1950; 1977), Devereux (1967; 1980), Lourau (1969; 1981; 1987; 1988), Bohm (1980; 1987), Morin (1982; 1986). Ao mesmo tempo, porém, o termo implicação, proveniente dos campos do direito e da matemática, é freqüentemente empregado fora de qualquer contexto teórico. Há alguns anos, tem compartilhado uma nebulosa ideológica com palavras como compromisso, participação, investimento afetivo, motivação etc.

O presente texto não pretende sintetizar as contribuições dos autores acima citados, nem explana as teses de quaisquer outros, ainda que pesquisadores em sociologia de campo, antropologia ou análise institucional. Limita-se a tentar explicar uma deriva “utilitarista” da noção de implicação.

“Implicação” produz suas metástases não apenas nos âmbitos da formação e da saúde, ou mesmo do trabalho social, nos quais, invertendo uma fórmula aplicada aos países do Leste europeu, por vasto tempo sob domínio comunista, se pode dizer que a ideologia foi substituída pela psicologia. Muitos outros campos socioprofissionais são afetados. O termo implicação se insinua nos jargões midiáticos, políticos, empresariais. A própria comunicação, hoje, se resume a um “implicar-se” na utilização de uma máquina “interativa”. Em última análise, muitos não se comunicam mais, bem ou mal, como vocês e eu: implicam-se.

A origem deste uso voluntarista, produtivista, utilitarista, supostamente pragmático, do termo implicação encontra-se, talvez, numa mescla de influências cristãs, existencialistas, fenomenológicas, psicologistas. “Eu me implico”, “ele não se implica o suficiente” são fórmulas que equivalem a versões novas de outras, velhas: “eu me comprometo”; “ele não se compromete realmente”.

Tais fórmulas constituem juízos de valor sobre nós mesmos e sobre os demais, destinados a medir o grau de ativismo, de identificação com uma tarefa ou instituição, a quantidade de tempo/dinheiro que lhe dedicamos (estando lá, estando presentes), bem como a carga afetiva investida na cooperação. É uma espécie de virtude teologal: a “presença no mundo”. Depois do protestantismo, o catolicismo social a tem preconizado a fim de reduzir a distância hierárquica entre o clero e o povo de Deus, entre os patrões e os operários, entre os grandes proprietários e os trabalhadores agrícolas. Tal é o substrato teológico desta ideologia. Porém, não nos surpreendamos que a este se mesclem também, tanto no Ocidente quanto no Oriente, elementos não diretamente religiosos: o sincretismo é um fator de êxito para o implicacionismo.

A inflação do implicacionismo toma cada vez mais difícil o uso da noção de implicação no quadro teórico que, para certo número de investigadores, permanece sendo o da análise institucional. Foi neste quadro que nasceu o conceito de implicação, sob a influência da contratransferência institucional em psiquiatria e sob o efeito da intervenção socioanalítica. Muitos outros investigadores utilizam implicação como uma noção errática, sem nexos com uma teoria englobante. Também os que se referem eventualmente a Devereux, ou a certa variante da fenomenologia moderna, nem sempre escapam à deriva solitária do conceito.

Caso se tratasse somente de uma discussão semântica, não falaríamos mais do tema. Talvez até buscássemos outra palavra, outro representante da coisa, outro significante (segundo a lingüística saussuriana), ou outro representamen (consoante a semiótica de Peirce). Mas se significantes e representamen geralmente admitem manuseios sem grandes protestos (“democracia”, “ordem”, “progresso”, “liberalismo”, “socialismo”, “revolução” etc.), exigem do investigador um tratamento menos brutal. Se o investigador leva a sério não os seus resultados mais, ou menos insólitos, mas sua neurose explicativa e, mais ainda, sua neurose de comunicação, não se pode permitir impor um sentido às palavras da tribo a fim de gemer quando ela continua a usar tais palavras conforme os pesos e as estratégias dos intercâmbios cotidianos teleguiados pela Bolsa de Tóquio ou de Nova York. A deriva de sentido é parte do trabalho do conceito, já que o conceito, como a madeira de construção, “trabalha”. O sentido que tratamos de estabelecer, para além das exortações mágicas dos sociólogos neopositivistas, não é “puro”, contrariamente ao que sustentava Mallarmé -“dar um sentido mais puro às palavras da tribo” – em seu famoso Toast Funebre. O sentido que tratamos de estabelecer é diverso. Está ajustado a uma estratégia. Encontrar outra palavra ou, em último caso, um signo abstrato, um sinal, como o signo matemático da implicação – e, por que não, o da inclusão -, constitui um deslocamento da questão, não uma melhor resposta.

A carga semântica da palavra é a presença ativa, chamativa e obscena, de seu devir, de sua relação com o jogo de forças e formas sociais (institucionalização). É quase impossível analisar o devir sem tentar descrever em que ele nos analisa –  ele, o analisador de todas as coisas, o parteiro da contradição permanente, que integra tanto os fazedores de anjos e as técnicas contraceptivas quanto a nova tecnologia da procriação artificial e os novos Prometeus de avental branco. Semelhante trivialidade, bem teorizada por filósofos árabes na Europa medieval, parece ser ignorada pelos modernos partidários do cientificismo, hoje na crista da onda.

A gênese teórica do conceito de implicação, aquilo que lhe permite surgir atualizado como elemento de uma teoria das ciências sociais, não oferece dificuldades insuperáveis. O mesmo não ocorre, todavia, com a gênese social do conceito. Expondo brevemente a instabilidade ideológica do implicacionismo, indiquei o tom. Toda uma investigação, de resto apaixonante, deverá ser levada a cabo para descrever a gênese social e, concomitantemente, corrigir, e mesmo invalidar, aquilo que surja como excessivamente esquemático no esboço que ora apresento. A gênese social do conceito de implicação obriga a sociologia, se esta não quiser permanecer um discurso semifilosófico acerca do social, a receber em pleno rosto as contradições mais desagradáveis e nos obriga a moderar nosso otimismo profético. Da mesma forma pensa Jacques Guigou (1987):

A crescente velocidade com que se institucionaliza a investigação exige uma espécie de censura burocrática a tudo aquilo que, pertinente à vida cotidiana dos investigadores, constitui-se em parasita segundo a lógica dita “científica”.

Assinalando que a “síndrome da implicação afeta a tal ponto os investigadores das ciências sociais e seus mestres, que a mais completa confusão se tem difundido a propósito deste conceito”, Guigou põe em evidência o seguinte paradoxo: enquanto o implicacionismo e o modismo da implicação fazem furor, a investigação se burocratiza, fechando-se cada vez mais em segredos. Logo, se o sistema fala de implicações, é para impedir que sejam desveladas. “Implique-se, reimplique-se, porém não analise suas implicações”, faz dizer Guigou ao sistema. De fato, a forma pronominal, reflexiva, do verbo implicar designa não somente aquela virtude teologal a que antes nos referimos, mas principalmente o sobretrabalho exigido pela produção de urna mais-valia, de uma rentabilidade suplementar. Por sobretrabalho compreendemos algo diverso daquilo que seria simplesmente o dever do cidadão perante o Estado, o qual consiste, para os cristãos, no exercício correto de um ofício, a fim de provar que não estão fora deste mundo. Reportamo-nos, então, ao que Jules Celma (1971) chama “exploração da subjetividade”, que sucede a exploração da objetividade do homem no trabalho alienado – forma de sobre-exploração e sobre-repressão, no sentido marcusiano. Autorizamo-nos a propor o termo sobreimplicação para designar esta deriva do conceito de implicação, relacionada à subjetividade-mercadoria.

A implicação é um nó de relações; não é “boa” (uso voluntarista) nem “má” (uso jurídico-policialesco). A sobreimplicação, por sua vez, é a ideologia normativa do sobretrabalho, gestora da necessidade do “implicar-se”.

O útil ou necessário para a ética, a pesquisa e a ética da pesquisa não é a implicação – sempre presente em nossas adesões e rechaços, referências e não referências, participações e não-participações, sobre motivações e desmotivações, investimentos e desinvestimentos libidinais… – , mas a análise dessa implicação.

Um cidadão que participa de quinze associações e vota regularmente não está mais “implicado” nem “se implica” mais do que o que somente faz parte de duas associações e jamais vai depositar seu voto nas urnas. A respeito do primeiro, podemos dizer que é mais participativo, mais comprometido. Contudo, as implicações do não-participacionista não são menos fortes do que as do participacionista. Ambas devem ser analisadas. O absenteísmo e o abstencionismo não revelam ausência de implicação: configuram atos, comportamentos, assunções de posturas éticas, políticas. A deserção e a defecção são tão significativas – conforme assinala Hirshmann – quanto o ato de tomar a palavra participativamente, nele incluída a contestação participativa ou a participação contestatária. Se a participação e o compromisso com certos setores da vida social (não necessariamente com todos) podem simbolizar adesão, integração ou identificação, a deserção e a defecção podem, por sua vez, simbolizar uma desafetação – força altamente instituinte, como temos podido observar, há um ano, nos países do Leste europeu. Em um antigo estudo (1969), tratei de mostrar como a ideologia participacionista, bastante ativa imediatamente após os movimentos de 1968, orientava-se no sentido de retomada das rédeas depois da grave crise de desafetação que atingira grande parte do sistema institucional. Durante as duas décadas transcorridas desde então, a obsessão com o “retorno aos valores seguros” dá provas da profundidade da desafetação e da necessidade de uma constante propaganda em favor da sobreimplicação.

Assim, a oposição entre o aspecto ativo (ativista) da sobreimplicação e o aspecto passivo da implicação (sempre já existente) é mera aparência que convém superar. A sobreimplicação e o ativismo, uma vez analisados, apresentam aspectos extremamente passivos: submissão a ordens explícitas ou a consignas implícitas da nova ordem econômica e social, ávida por preencher as grandes brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela institucionalização, maior ou menor, do desemprego. A implicação, por sua vez, deve ser analisada individual e coletivamente, o que supõe atividade intensa e, muitas vezes, penosa. Apesar de nada haver nela de essencialmente passivo, uma dificuldade quanto a sua análise, conforme assinala Guigou, é que a implicação se encontra camuflada pela sobreimplicação, mantida à sombra da última.

Sem dúvida, a sobreimplicação também interfere na análise da implicação quando isolamos um dos campos de análise, psicologizando-o, por exemplo. Ainda que de modo confuso e sem grandes teorizações, Devereux teve consciência disso ao falar em “situação de observação”. Quando a relação com o objeto ocupa todo o espaço e esvazia os outros campos de implicação (Manero, 1987) existentes – como a encomenda, a instituição, a relação com a teoria, a relação com a escritura –, psicologiza-se e se sobreimplica um campo. A autonomização de outro campo – o da análise da encomenda social, por exemplo – leva-nos a subestimar os demais, desta vez por um efeito de sociologização. Desse modo, pode-se chegar a negar a existência de um ou outro campo; por exemplo, o libidinal, o da relação com o objeto, ou mesmo aquele, igualmente obscuro e determinante, da relação com a escritura.

O nível ou campo de análise mais imediatamente objetivo – pertencer a determinada classe, estatuto, etnia etc. – não deve ser hipostasiado sob pena de deixar escapar outros níveis ou campos de análise da implicação. Tampouco convém lançar mão da explicação multiuso através do imaginário, ainda que o imaginário não esteja ausente, em absoluto, quer da implicação quer dos insigths sobreimplicacionais.

No velho vocabulário marxista-militante, a fim de exorcizar seu vergonhoso pertencimento ao “outro lado da Fenda” (como diria Jack London), os intelectuais inventaram o conceito tipicamente teológico de “posição de classe”, mágico resultado de seu “compromisso”. Esta posição imaginária – genitora de falsa consciência, no sentido de Mannheim ou de Gabel – evitava enfrentar a análise das implicações reais. Isto foi denunciado com veemência por uma célebre terrorista, Ulrike Meinhof, às vésperas de sua morte (1976-1977). Como o marxismo institucional, ou mesmo terrorista, já não pode decentemente recorrer à noção de “posição de classe”, as novas roupagens do implicacionismo estão dispostas a rejuvenescer as velhas extravagâncias “progressistas”.

Da perspectiva de uma sociologia da intelligentsia temos o direito, como tratei de o fazer (Lourau, 1981), de definir o intelectual por seu rechaço a analisar suas implicações – rechaço dissimulado, mais uma vez, sob a retórica da sobreimplicação, da participação na universalidade do “progressismo”.

A sobreimplicação é o plus, o ponto suplementar que o docente atribui ao trabalho do aluno se encontra esmero em seus cadernos (foi assim que minha filha trouxe para casa, triunfalmente, um 21 sobre 20 em matemática, matéria em que ela já brilhava). A sobreimplicação é composta igualmente de virtudes exigidas dos empregados, hierarquizadas em grades de avaliação. O comitê da empresa TFl, cadeia de televisão privatizada, sob o comando do rei do concreto Francis Bouygues, promoveu um sistema sobreimplicacionista de qualificação que compreendia, além de “Coragem-tenacidade-vontade de êxito”, a rubrica “Implicação-estado de ânimo” (Líbération, 5 de fevereiro de 1988, p. 7).

O projeto de grade de avaliação de Bouygues mostra bem que se trata de exigir um suplemento de espírito, garantia de um sobretrabalho diretamente produtor de identificação com a instituição e indiretamente produtor de mais-valia em favor do empregador – e não em favor do trabalhador coletivo, cuja cooperação repousaria minimamente, ainda e sobretudo, na resistência. É a autogestão ou a co-gestão da alienação.

A situação de desafetação silenciosa (no sentido em que Bernanos falava de “apostasia silenciosa”, a propósito de seus correligionários cristãos), embora vise ao instituído, é também diretamente produzida pelo instituído. Quem, afinal, fabrica a soropositividade do desemprego gigantesco senão o sistema político-econômico e sua filosofia “liberal”, que transcende a questão da felicidade, denegando-a com uma força e uma violência equivalentes às que exercia a dominação teocrática? Eis o que se deve dissimular e ocultar a todo custo, através da nova “exploração de subjetividade”. Não tão nova assim, aliás, se pensarmos nas Cruzadas, nas guerras modernas baseadas no recrutamento obrigatório e na obrigação de patriotismo, nos velhos totalitarismos vampirizadores da subjetividade como são os do século XX: “Por trás da sobrepolitização nazi ou estalinista se produz e reproduz o recalcamento sistemático da política”, assinala J. M. Vmcent (1987). A sobreimplicação não é uma ferramenta de sobrepolitização total, mas pode transformar-se nisso. Já não é a psicologia (o psicanalismo) que devém ideologia, é o inverso: “A ideologia tornou-se a psicologia de dezenas de milhões de trabalhadores, kolkhozenos, agrônomos, docentes, médicos e dirigentes”. Nesta enumeração ao estilo Prévert, Leonid Abalkine, alto burocrata da pesquisa na URSS, desastradamente esquece… os pesquisadores (Le Monde, tradução de um trecho de Komsomolskaia Pravda, fevereiro, 1989).

Esta OPA[2] da ideologia sobre o psiquismo manifesta-se em muitos setores. “Impregnados de harmonia evangélica e contestatária, os dominicanos do Cervo mostram sorridente desapreço pelo que tacham de juridismo ou formalismo […]. A única coisa que importa é participar, com recíproca confiança, da equipe fraternal dos religiosos e laicos que anima a Casa”. É assim que Michel Carrouges, especialista em “máquinas celibatárias”, descreve, divertindo-se, o bem conhecido convento-editora-centro cultural (1974).

Partido, Igreja… e a empresa? “Na fábrica, o nós é utilizado em um sentido que, bizarramente, é quase o oposto do que se encontra no dicionário: esta pequena palavra, que habitualmente remete a uma idéia de comunidade, adquire um valor de advertência na boca de um dirigente e marca a diferença que o deve distinguir dos outros”, observa o húngaro Harastzi (1970).

Os outros, os operários, dizem “eles” para designar os supervisores, empregados de escritório e dirigentes, dentro ou fora da fábrica. O “nós” está carregado de uma encomenda de sobreimplicação. Apela à submissão dos operários através da ficção de uma comunidade não mais evangélica, mas… comunista.

Abandonemos a Hungria dos anos 1970. Voltemos a Paris, anos 1980. Peter Halbherr desenvolve uma enquête na sede francesa de uma famosa multinacional dedicada a técnicas de comunicação. Um de seus informantes, há muito “gerente” da empresa, descreve sua carreira, à primeira vista aberrante, mas, na realidade, absolutamente típica do modo como a empresa manipula a sobreimplicação de seus executivos. “Em cada período ele avançava rapidamente, com uma mobilização máxima de seu potencial de trabalho (sublinhado por mim, René Lourau), para ser imediatamente recolocado em um novo ponto de partida, mais modesto, que permitia um novo avanço rápido”. O “ritual de avaliação” é repetitivo e estressante. “A implicação do empregado nesse jogo é total e, neste sentido, trágica”. Para Peter Halbherr, trata-se de “loucura institucional” (1987). Em estudo anterior sobre a mesma empresa, realizado pela equipe de Pages (1979), pode-se ler: “As políticas de TLTX vão muito além de «tratar bem o pessoal», que continua sendo a regra da empresa clássica; tais políticas apóiam-se em uma filosofia da qual se pretendem afastar: não se contentam em dar para desculpar a exploração, elas exigem”. Casos recentes, muitas vezes trágicos, de dissidência de executivos licenciados são analisados, pelos atores ou por testemunhas, em termos de vampirização. O contexto é descrito por Rank Xerox como de “euforia e mobilização permanentes”. Um engenheiro da IBM, antes de se suicidar, fala de “mutação da personalidade”. A seleção dos futuros executivos “de alto potencial” induz à criação de um “organograma bis” para os indivíduos que sabem rentabilizar seu estresse e possuem um “ânimo” forte.

Do ponto de vista da análise institucional, a sobreimplicação não só produz sobretrabalho, estresse rentável, doença, morte e mais-valia, como também cash-flow – benefício absolutamente nítido consagrado ao reinvestimento e, portanto, ao crescimento indefinido da empresa-instituição. As relações sociais produtivas são cash-fiowizadas. A lealdade à empresa, que Hirshrnann compara à lealdade que os Estados Unidos esperam de seus cidadãos, não é também uma forma de cash-flow? É o que sugere Eric Burmann: “Antes, o cidadão devia servir fielmente ao Estado, fiador da ordem social capitalista; agora, deve estender tal civismo à sua atividade no seio da empresa, em seu trabalho. Os direitos do homem nunca foram outra coisa senão o direito que garante os privilégios sociais. O dever das massas dominadas era respeitar passivamente esses privilégios, erigidos, de modo falacioso, em direitos naturais. Hoje elas devem promovê-los” (texto datilografado, transmitido pelo autor, 1987).

O implicacionismo da sobreimplicação é a performance ergológica ou desportiva (ou mesmo artística), o neo-stakhanovismo que, no Japão, resulta não somente nos círculos de qualidade como forma de recuperação do sobretrabalho intelectual e físico da base, como igualmente, na recente legislação japonesa, na instituição do karoshi – reconhecimento de morte por excesso de trabalho.

A morte por trabalho não deveria espantar os pesquisadores sobreimplicados no trabalho do conceito de implicação!

* * *

Eu estava trabalhando em Moisés e o monoteísmo, de Freud, quando determinada manhã, ao despertar, peguei no ar esta palavra, sobreimplícação. Ela estava a ponto de se desvanecer, como já se desvaneciam as linhas memorizáveis de meu sonho. So mente mais tarde novas associações substituiriam as que ainda flutuavam ao despertar.

Na véspera da noite do sonho, eu recebera a fotocópia de um manuscrito de Fernand Deligny, Tentatives d’approche du tacite, cuja leitura me emocionara tanto quanto a releitura de Moisés. Impressionarame particularmente a insistência de Deligny em evocar o “on”[3] como um embreador “indefinido” de tudo o que é tácito, ou tacitamente óbvio, na comunicação instituída. Não sei se eu conhecia, à época, o Diário clínico de Ferenczi; em todo caso, pouco tempo depois, a “intropressão” do adulto sobre a criança se harmonizaria, para mim, com a idéia de enorme carga de on pesando sobre as crianças autistas, bem como sobre todos nós, animais infantis desnaturalizados.

Tal é o contexto de descoberta – se o termo não parecer ambicioso em demasia – da noção de sobreimplicação e também a origem do desdobramento do implicacionismo em dois conteúdos contraditórios e dialeticamente vinculados. A sobreimplicação do velho Freud em seu laborioso e caótico ensaio sobre as fontes do monoteísmo e o caráter sumamente problemático de um pai da religião judaica produziram em mim, desde as primeiras leituras, uma verdadeira irradiação de angústia, de angústia de morte. O velho pai – e meu próprio pai, falecido em 24 de dezembro de 1986 – atormentado por seus melhores filhos, Jung, Adler, Rank, Reich e, também, Ferenczi; em seguida, preocupado com a ascensão do nazismo; logo perseguido, exilado e morrendo longe de sua Viena; ele (e nenhum outro) podia, na velhice, descer à arena e afrontar, até a morte, o Nome do Pai.

Ferenczi, o filho querido e insuportável, acabara de morrer. Porém de Freud a Ferenczi, de Ferenczi a Balint, de Balint a Devereux, a cadeia austro-húngara, a cadeia boemiana se prendia, para mim, ao elo Deligny.

Da clínica stricto sensu à clínica social, e da análise social à análise institucional da pesquisa, uma continuidade tenta se estabelecer, quiçá retorcida qual o anel de Moebius. Com interlocutores diversos, na França e no exterior, experimentei a performance relativa do conceito de sobreimplicação, o qual ajuda a deixar para trás a velha/ nova problemáticasubjetivismo/ objetivismo” em que se refugiam as variedades de fenomenologismo ou de suposto “antipositivismo”.

Com a sobreimplicação, apreende-se o vínculo entre subjetivismo e instrumentalismo. Nesse sentido, o implicacionismo do sobretrabalho é paradigmático. No que concerne à pesquisa ou ao “trabalho intelectual” em geral, somente forneci breves indicações, que é preciso retomar, sistematicamente, para averiguar de que modo o rechaço puro e simples da análise da implicação (que define o “intelectual”) se liga ao suposto pragmatismo do implicacionismo.

1987-1990

Referências bibliográficas

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(La plénitude de l’univers. Mônaco: Ed. Du Rocher, 1987. Tradução francesa.)

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[1] “lmplication et surimplication”. Revue d11 Mauss (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales), nº 10, 4º trimestre, 1990. Tradução: Ana Paula Jesus de Melo.

[2] Offre Publique d’Achat, que reporta ao momento em que uma empresa quer comprar as ações de outra para obter seu controle (N. do T.).

[3] On equivale ao se, partícula indeterminadora do sujeito em português: fala-se, canta-se, deixa-se… (N. do T.).

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