FILME DEAD MAN
O filme pode perguntar: qual a forma dominante da qual os devires nos liberam? É a forma do homem-branco-macho-racional-europeu, padrão majoritário da saúde e da cultura do Ocidente. E como desfazer o Rosto do homem branco, bem como a subjetividade, a paixão, a consciência e a memória que o acompanham? Talvez a literatura e os devires que ela propicia recebam aí uma de suas funções “políticas”. É toda uma pregnância do modelo de “saúde” que a literatura deserta ao abandonar a Forma-homem, ao embarcar em devires minoritários, inumanos, plurais. Daí porque, diz Deleuze com tanta insistência, escrever não é contar suas lembranças, suas viagens, seus amores, seus fantasmas. Num certo sentido é todo o contrário. Pois escrever é desertar precisamente o eu, essa forma dominante, hegemônica, personológica, edipiana, neurótica, esse estado doentio através do qual uma certa literatura insiste em perpetuar-se. Escrever é abandonar esse cortejo mórbido, pois apenas assim pode a literatura responder à função proposta por uma linhagem de autores que Deleuze pretende alinhavar: a de liberar a vida por toda parte onde ela esteja aprisionada – e ela está aprisionada nas formas constituídas, sobretudo na forma dominante do EU E DA IDENTIDADE MODERNA. A literatura, portanto, para ser o que lhe cabe ser, isto é, vital, deveria, no que parece representar um paradoxo, tornar-se impessoal. Impessoal não quer dizer objetiva, mas alheia à forma pessoal do eu, aos seus draminhas psicológicos, às suas ladainhas sentimentais – é preciso que tudo isso seja varrido por algo mais sóbrio, mais invisível, mais impalpável, mais anônimo. Foi Blanchot, sem dúvida, quem melhor caracterizou a necessidade de um tal impessoal. Por exemplo, o uso do pronome pessoal se, o on francês, essa terceira pessoa que surge na escrita e que a abre para uma dimensão “neutra”, o COMUM, O GENÉRICO. O impessoal da escrita atrai o eu para uma esfera mais evanescente, plural, fragmentária, intensiva, onde podem brotar devires outros que a forma do eu esconde ou soterra,.que ela espantaria com sua musculatura e saúde por demais atléticas ou, ao contrário, excessivamente chorosas.
PPP.
Alguns “Provérbios do Inferno” do livro CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO de
William Blake que se relacionam com o filme DEAD MAN.
Conduz tua carroça e teu arado sobre a ossada dos mortos.
A Prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela
Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O verme perdoa o arado que o corta.
Imerge no rio aquele que a água ama.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê.
A Eternidade anda enamorada dos frutos do tempo.
Ave alguma se eleva a grande altura, se se eleva com suas próprias alas.
Um cadáver não revida agravos. .
O manto do orgulho, a vergonha.
Nunca a águia perdeu tanto tempo quando quis aprender com o corvo.
Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis, com tijolos da Religião.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.
O rugir de leões, o uivar de lobos, o furor do mar em procela e a espada destruidora são fragmentos de eternidade, demasiado grandes para o olho humano.
A raposa culpa o ardil, não a si mesma.
O tolo, egoísta e risonho, & o tolo, sisudo e tristonho, serão ambos julgados sábios, para que sejam exemplo.
O que agora se prova outrora foi imaginário.
A cisterna contém: a fonte transborda.
Dize sempre o que pensas e o vil te evitará.
Tudo em que se pode crer é imagem da verdade.
Jamais uma águia perdeu tanto tempo como quando se dispôs a aprender com a gralha.
De manhã, pensa. Ao meio-dia, age. Ao entardecer, come. De noite, dorme.
Quem consentiu que dele te aproveitasses, este te conhece.
Assim como o arado segue as palavras, Deus recompensa as preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Da água estagnada espera veneno.
Jamais saberás o que é suficiente, se não souberes o que é mais que suficiente.
Ouve a crítica do tolo! É um direito régio!
Os olhos de fogo, as narinas de ar, a boca de água, a barba de terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira jamais pergunta à faia como crescer; nem o leão ao cavalo como apanhar sua presa.
Quem reconhecido recebe, abundante colheita obtém.
Se outros não fossem loucos, seríamos nós.
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus ovos, o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água, a mais nova.
Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o desprezo para o desprezível.
O corvo queria tudo negro; tudo branco, a coruja.
Melhor matar um bebê em seu berço que acalentar desejos irrealizáveis.
A verdade jamais será dita de modo compreensível, sem que nela se creia.
***
“Toda noite e toda manhã
Uns nascem para o doce gozo ainda
Outros nascem numa noite infinda.”
Excerto do poema “Augúrios da Inocência” de William Blake. (1757-1827)