Literatura da Despalavra – Carta de Samuel Beckett a Alex Kaun, a “Carta Alemã” de 1937.

Esta carta, endereçada a um conhecido alemão com quem Beckett tivera breve contato na viagem que fez pela Alemanha em 1937, responde negativamente à sugestão de que ele, Beckett, deveria se ocupar de uma tradução do poeta Joachim Ringelnatz, pseudônimo Hans Bötticher (1983-1934), conforme esclarece Ruby Cohn, a editora de “Disjecta”, coletânea de escritos beckettianos diversos e dispersos que traz este texto.

Ringelnatz pareceu-lhe uma personagem interessante, mas um poeta nem tanto. Foi marinheiro, vidraceiro, bibliotecário, rastreador de minas durante a guerra e depois comediante de cabaret. A importância do documento, datado de 7 de julho de 1937 reside no programa estético precocemente esboçado pelo autor da trilogia, demonstrativo do elevado grau de consciência e clarividência artística com que já então antevia seu próprio percurso futuro.  

 

Caro Axel Kaun,

 

Muito obrigado por sua carta. Estava a ponto de escrever-lhe quando ela chegou. Então tive que seguir adiante com minhas viagens, como o carimbo postal viril de Ringelnatz, ainda que em circunstâncias menos apaixonantes.

O melhor seria que lhe contasse de imediato sem dourar a pílula que Ringelnatz, na minha opinião, não vale o esforço. Certamente você não ficará desapontado em ouvir isto de mim do que estou em afirmá-lo.

Li de cabo a rabo 3 volumes, selecionei 23 poemas e traduzi dois deles como exemplos. O pouco que necessariamente perderam no processo só pode, naturalmente, ser avaliado em relação àquilo que teriam a perder, e devo dizer que este coeficiente de perda de qualidade me pareceu muito baixo, mesmo naquelas passagens em que ele é mais poeta e menos um fanático da rima.

Não se segue disto que uma tradução de Ringelnatz não encontraria interesse ou sucesso junto ao público inglês. Mas a este respeito sou totalmente incapaz de formar uma opinião, uma vez que as reações do público restrito, bem como do amplo estão se tornando cada vez mais um enigma para mim, e, o que é pior, de pouca importância. Pois não posso me libertar da alternativa ingênua, ao menos no que diz respeito à literatura, de que um assunto deve valer a pena ou não. E se precisamos ganhar dinheiro a todo preço, que o façamos em outro lugar qualquer.

Não tenho duvidas de que, como ser humano, Ringelnatz era de extraordinário interesse. Mas, como poeta, parece ter compartilhado a opinião de Goethe: é melhor escrever NADA do que não escrever nada. Até mesmo o Grande Conselheiro Ducal teria permitido ao tradutor sentir-se indigno deste alto Kakoethes.

Explicaria em minúcia o meu mal-estar com a fúria rimante de Ringelnatz, caso você estivesse empenhado em compreendê-lo. Por ora, contudo, vou poupá-lo. Talvez você aprecie as orações fúnebres tão pouco quanto eu.

Também poderia, talvez, informá-lo dos poemas que selecionei e enviar as traduções como exemplo.

 

***

 

Fico sempre contente em receber uma carta sua. Portanto, por favor, escreva tão freqüente e extensivamente quanto possível. Você faz questão que eu faça o mesmo em inglês? Fica tão aborrecido em ler minhas cartas em alemão quanto eu em escrever em inglês? Sentiria muito se você achasse que há entre nós algo semelhante a um contrato que eu falho em cumprir. Uma resposta faz-se necessária.

Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês oficial. E, mais e mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. Gramática e Estilo. Para mim, eles parecem ter se tornado tão irrelevantes quanto o traje de banho vitoriano ou a imperturbabilidade do verdadeiro cavalheiro. Uma máscara. Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela um buraco atas do outro, até que aquilo que está a espreita por trás – seja isto alguma coisa ou nada – comesse a atravessar; não consigo imaginar um objeto mais elevado para um escritor hoje.

Ou será que a literatura, solitária, deve permanecer atrasada em seus velhos caminhos preguiçosos que há tanto tempo foram abandonados pela música e pela pintura? Há alguma coisa paralisantemente sagrada na natureza viciosa da palavra que não se encontra nos elementos das outras artes? Há alguma razão pela qual a terrível e arbitrária materialidade da superfície da palavra não seria capaz de ser dissolvida, como pode, por exemplo, a superfície do som, rasgada pelas enormes pausas, da Sétima Sinfonia de Beethoven, de forma que, por páginas a fio, nós não podemos perceber nada a não ser um caminho de sons suspensos nas alturas vertiginosas, ligando insondáveis abismos de silêncio? Uma resposta faz-se necessária.

Sei que há pessoas, pessoas sensatas e inteligentes, para quem não faz falta o silêncio. Não posso senão concluir que são orelhas de pau. Pois na floresta de símbolos, que não são nenhum, os pequenos pássaros da interpretação, que não é nenhuma, nunca silenciam.

Por ora, é claro devemos nos satisfazer com pouco. Num primeiro momento, só podemos nos ocupar da questão de encontrar, de alguma maneira, um método pelo qual possamos representar esta atitude de ironia para com as palavras, através de palavras. Nesta dissonância entre os meios e seu uso talvez seria a possibilidade de experimentar um suspiro daquela música final ou daquele silencio que subjaz a Tudo.

Com um programa destes, na minha opinião, o trabalho mais recente de Joyce não tem absolutamente nada a ver. Nele, parece tratar-se mais de uma questão de apoteose da palavra. A menos que Ascensão aos Céus e Descida aos Infernos sejam, de alguma maneira, uma e a mesma. Que bonito seria poder acreditar que este fosse mesmo o caso. Mas, por ora, devemos nos ater à mera intenção.

Talvez as logografias de Gertrude Stein estejam mais próximas do que tenho em mente. Pelos menos, a textura da linguagem tornou-se porosa, se de fato o fez, e apenas por muito acaso, como uma conseqüência de uma técnica similar à de Feininger. A infeliz senhora (será que continua viva?) ainda está, sem sobra de dúvida, apaixonada por seu veículo, mesmo que apenas da maneira que um matemático se apaixona por seus algarismos; um matemático para quem a resolução do problema é de interesse completamente secundário, para quem, na verdade, a morte de seus algarismos deve parecer terrível. Estabelecer uma relação entre este método e o de Joyce, como é moda, espanta-me como uma insensatez comparável à tentativa de aproximar Nominalismo (no sentido dos escolásticos) e Realismo. À caminho desta literatura da despalavra, para mim tão desejável, alguma forma de ironia nominalista poderia ser um estágio necessário. Mas não é suficiente que o jogo perca um pouco de sua sacrossanta seriedade. Ele deveria cessar. Ajamos então como aquele matemático louco (?) que empregava um princípio de mensuração diferente a cada etapa de seu cálculo. Um ataque às palavras em nome da beleza.

Neste meio-tempo, não estou fazendo absolutamente nada. Apenas, de quando em quando, tenho o consolo, como agora, de pecar involuntariamente contra uma língua estrangeira, como gostaria de fazer, com conhecimento de causa e de propósito, contra a minha própria e como – Deo juvante – farei.

 

Saudações cordiais

 

Você quer o livro de Ringelnatz de volta?

Há traduções de Trakl para o inglês?

 

 

   

Um comentário em “Literatura da Despalavra – Carta de Samuel Beckett a Alex Kaun, a “Carta Alemã” de 1937.

Adicione o seu

Deixe um comentário

Acima ↑