B. Latour – corpos, subjetividades, ciências, pesquisas [2008, Edições Afrontamento]

Como falar do corpo?

A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência[1]

            Durante a conferência que motivou este texto, fiz um pequeno teste e pedi aos participantes que anotassem o antônimo da palavra «corpo» [body]. Entregaram-me uma longa lista, com algumas definições previsíveis e divertidas, como «anticorpo» [antibody] ou «ninguém» [nobody]; mas as que mais me chamaram a atenção foram «insensível» e «morte». Se o contrário de ser um corpo é morrer, não podemos pretender ter uma vida separados do corpo, muito menos uma vida depois da vida, ou uma vida do espírito: ou se tem um corpo, se é um corpo; ou está-se morto, é-se cadáver, um número numa macabra contagem de corpos. É esta a consequência direta do argumento de Vinciane Despret, inspirado nas ideias de William James sobre as emoções: ter um corpo e aprender a ser afectado, ou seja, «efectuado», movido, posta em movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. Quem não se envolve nesta aprendizagem fica insensível, mudo, morto.

            Armados com uma definição tão «pato-lógica» de corpo, livramo-nos da obrigação de definir uma essência, uma substância (o que o corpo é por natureza). Em vez disto, como argumentarei neste artigo, podemos procurar definir o corpo como uma interface que vai ficando mais descritível quando aprende a ser afectado por muitos mais elementos. O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo de superior – uma alma imortal, o universal, o pensamento – mas aquilo que deixa uma trajectória dinâmica através da qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É esta a grande virtude da nossa definição: não faz sentido definir o corpo directamente, só faz sentido sensibilizá-lo para o que são estes outros elementos. Concentrando-nos no corpo, somos imediatamente – ou antes, mediatamente – conduzidos aquilo de que o corpo se tornou consciente. É assim que interpreto a frase de James: «O corpo em si é a principal instância do ambíguo» (James, 1996 [1907]).

            Dada a óbvia dificuldade do presente tópico, tentarei teorizar não sobre o corpo directamente, mas antes sobre «conversas do corpo» [body talks], isto é, sobre as diversas formas como o corpo é envolvido nos relatos daquilo que faz. Com que condições podemos mobilizar o corpo no nosso discurso sem nos deixarmos arrastar imediatamente para as habituais discussões sobre dualismo e holismo? Responderei a esta questão de duas formas. Primeiro, pretendo mostrar a enorme diferença que representa, nos discursos do corpo, fazer uso de proposições (que ou são articuladas ou inarticuladas) em vez de afirmações (que ou são verdadeiras ou falsas). Isto permitir-me-á devolver ao corpo todos os equipamentos materiais que o tornam sensível as diferenças. Depois, de forma mais extensiva, apresentarei uma outra definição normativa do que é falar cientificamente sobre o corpo. Concluirei com esta «epistemologia política», inspirada nos trabalhos de Isabelle Stengers e Vinciane Despret, apresentando a condição sob a qual poderemos manter alguma «liberdade de expressão» nas conversas do corpo – direito essencial, argumentarei, no advento daquilo a que já chamaram o «biopoder».

1. ARTICULAÇÕES E PROPOSIÇÕES

            Devemos perceber primeiro qual pode ser o sentido de «aprender a ser afectado». Começo com um exemplo muito simples, inspirado na descrição de Genevieve Teil (1998), sobre o treino de «narizes» para a indústria de perfumes com recurso a «malettes a odeurs» (kits de odores)[2]. Este exemplo tem uma vantagem: é muito menos dramático do que os casos médicos, que tantas vezes associamos imediatamente as discussões sobre o corpo (ver Hirschauer, 1991), mantendo-se ao mesmo tempo em estreita ligação com questões de estética e de competência e em contacto próximo com a química pura e dura. 

            O kit de odores é constituído por uma série de fragrâncias puras nitidamente distintas, dispostas de forma a poder passar-se do contraste mais abrupto ao mais suave. Para conseguir registrar estes contrastes é necessário cumprir uma semana de treino. A partir de um nariz mudo, que pouco mais consegue do que identificar odores «doces» ou «fétidos», rapidamente se obtém um «nariz» [un nez][3], ou seja, alguém capaz de discriminar um número crescente de diferenças subtis, e de as distinguir entre si, mesmo quando estão disfarçadas ou misturadas com outras. Não é por acaso que se chama «nariz» a esta pessoa. Tudo se passa como se pela prática ela tivesse adquirido um órgão que define a sua capacidade de detectar diferenças químicas ou outras: pelo treino, aprendeu a ter um nariz que lhe permite habitar num mundo odorífero amplamente diferenciado. As partes do corpo, portanto, são adquiridas progressivamente ao mesmo tempo que as «contrapartidas do mundo» vão sendo registradas de nova forma. Adquirir um corpo é um empreendimento progressivo que produz simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível.

            Nesta breve descrição, gostaria de destacar um elemento fundamental: o kit propriamente dito, a «mallete à odeurs» que, nas mãos do especialista, cumpre as funções de um standard de facto. Não sendo uma parte do corpo, tal como o definimos tradicionalmente, é certamente uma parte do corpo entendido como «treino para ser afectado». No que diz respeito à sensação progressiva, o kit é coextensivo ao corpo. O especialista dispôs os contrastes de forma sistemática. Graças ao kit, e às suas capacidades enquanto professor, pode sensibilizar os alunos indiferentes para distinções cada vez mais subtis na estrutura interna do ingrediente químico puro que conseguiu reunir. Não se limitou a mudar os seus educandos da desatenção para a atenção, da semiconsciência para a apreciação consciente. Ensinou-os a serem afectados, ou seja, efectuados pela influencia dos químicos que, antes do treino, lhes atacavam as narinas sem qualquer proveito – efeito e afecto provem de facere, sendo ambos casos do que designei por «factiches» (Latour, 1996). Antes do treino, os odores atingiam os alunos mas não os faziam agir, não os faziam falar, não os tornavam atentos, não os excitavam de formas precisas: qualquer grupo de odores produziria nos alunos o mesmo efeito ou afecto geral e indiferenciado. Concluídas as sessões de treino, já não é indiferente que os odores sejam distintos. Cada interpolação atômica gera diferenças no aluno, que gradualmente se torna um «nariz», alguém para quem os cheiros do mundo produzem sempre contrastes que, de alguma forma, o afectam. O professor, o kit e o treino possibilitam que as diferenças nos odores façam com que os educandos criem coisas diferentes de cada vez – em vez de exibirem sempre o mesmo comportamento imperfeito. O kit (com todos os elementos que lhe estão associados) é parte essencial daquilo que é ter um corpo, ou seja, é parte do benefício de um mundo odorífero mais rico.

            É fundamental descobrir uma forma rigorosa para descrever este «aprender a ser afectado», pois pretendo contrastar este modelo de aprendizagem com outro modelo que quero evitar a todo o custo e que pode parasitar a minha descrição. Neste outro modelo, há um corpo, correspondente a um sujeito; há um mundo, correspondente aos objectos; e há um intermediário, correspondente à linguagem que estabelece ligações entre o mundo e os sujeitos. Se recorrermos a este modelo, ser-nos-á extremamente difícil tornar dinâmica a aprendizagem pelo corpo: o sujeito está «ali dentro do corpo» como uma essência definida e a aprendizagem não é necessária para a sua existência; o mundo está fora do corpo, ali, e afectar os outros não é necessário para a sua essência. Por sua vez, os intermediários – linguagem, kits de odores – desaparecem mal seja estabelecida a ligação, porque o seu papel é apenas esse, conduzir uma ligação. Mais importuna será a qualificação da própria ligação: se usarmos o modelo sujeito-objecto, seremos tentados a questionar quão exacta é a percepção dos odores registrada no kit. Rapidamente seremos levados a reconhecer que existem diferenças enormes que não são registradas por todos os narizes, e que, inversamente, alguns deles são sensíveis a contrastes sem correspondência na estrutura química das fragrâncias purificadas.

            Para tentar resolver a questão das discrepâncias entre os diversos relatos, tenderemos a distinguir os odores: primeiro, os odores tal como existem no mundo – registrados por cromatógrafos, análise e síntese químicas (tratarei disto mais adiante) – e, segundo, os odores tal como são cheirados por um aparelho humano falível, hesitante e limitado. Chegaremos a um mundo constituído por um substrato de qualidades primárias – aquilo que a ciência vê, mas que escapa ao ser humano comum -, às quais os sujeitos acrescentaram meras qualidades secundárias existentes apenas nas suas mentes, nas suas imaginações ou nas suas narrativas culturais. Nesta operação, o corpo interessante terá desaparecido e para a compreender é-nos imposta a escolha entre duas opções: ou atribuímos a operação à natureza em nós, ao corpo fisiológico, à química dos receptores nasais ligados directamente às estruturas terciárias das feromonas e outros aerossóis; ou a atribuímos a incorporação subjectiva, ao corpo fenomenológico que singra entre a impressão vivida fornecida por algo «mais» do que a química do nosso nariz. Pouco importa a vida que possamos conferir a este suplemento de atenção, que há-de referir-se sempre à profundidade da nossa sujeição a nós próprios, e não àquilo que o mundo é realmente. A isto chamou Whitehead (1920) a «bifurcação da natureza». Ou temos o mundo, a ciência, as coisas, e não temos sujeito; ou temos sujeito e não temos o mundo, aquilo que as coisas são realmente. Está, assim, montado o cenário para uma longa discussão sobre «o» problema mente-corpo -, bem como para intermináveis sucessões de argumentos holísticos procurando «reconciliar» o corpo fisiológico e fenomenológico num todo unitário.

            Alertados para a descrição alternativa e para a armadilha em que é tão fácil cair, tentemos desviar a nossa narrativa deste caminho entrópico e afastá-la tanto quanto possível do equilíbrio… «Superar o dualismo mente-corpo» não é uma grande questão fundadora: é apenas resultado da falta de uma definição dinâmica do corpo como «a aprendizagem de ser afectado». Isto nota-se particularmente se compararmos o que acontece a um aluno que está a aprender a ser um «nariz» com o que acontece ao professor que concebe o kit de odores, através de um extenso inquérito a 2000 «narizes» não treinados, e com o que acontece ao químico que tenta construir instrumentos e dispositivos para registrar diferenças químicas nas diversas disciplinas do ramo industrial da criação de perfumes. Todos estes actores podem ser definidos como corpos que aprendem a ser afectados por diferenças que anteriormente não podiam registar, através da mediação de um arranjo artificial. A frase não prima pela elegância, mas lembremo-nos da perigosa facilidade em ceder a alternativa apresentada pela tradição das «conversas do corpo». Neste caso, a clareza seria enganadora. O aluno precisa de uma semana de treino e do kit; o professor beneficia da experiência de uma vida e do teste com 2000 indivíduos; os químicos orgânicos estão equipados com os cromatógrafos; os engenheiros químicos industriais tem as fábricas. Todos estes arranjos artificiais são dispostos em camadas simultâneas para sensibilizar o meu nariz para as diferenças, nomeadamente para ser levado a agir pelo contraste entre duas entidades.

            Partindo desta narrativa alternativa, não sou forçado a distinguir entre qualidades primárias e secundárias: se eu, nariz não treinado, necessito do kit de odores para ser sensível ao contraste, os químicos precisam dos instrumentos analíticos para se tornarem sensíveis as diferenças de um único átomo deslocado. Também eles adquirem um corpo, um nariz, um órgão, desta vez através dos seus laboratórios, e também das conferências, da literatura e de toda a parafernália que compõe aquilo que podemos designar por corpo colectivo da ciência (Knorr-Cetina, 1999). É possível que nós, leigos, não registemos as mesmas diferenças, ou que existam muitas discrepâncias entre os nossos narizes não treinados. Mas afirmar que devemos fazer um corte profundo entre a minha subjectividade e a objectividade deles é outra coisa, porque também entre os químicos orgânicos haverá ligeiras e produtivas discordâncias. Também entre os engenheiros encarregados de fabricar os perfumes surgirão muitos contrastes; e igualmente entre químicos e químicos orgânicos, contra os «narizes», e entre «narizes» e painéis de consumidores, etc.

            Deste pequeno exemplo podemos concluir que os corpos são o nosso destino comum, pois não faz sentido dizer que sem o meu corpo eu conseguiria cheirar melhor, que sem o kit me podia tornar um nariz melhor, que sem o laboratório os analistas químicos seriam capazes de fazer uma química melhor, ou que sem as fábricas seria possível produzir industrialmente melhores fragrâncias… Só um nariz sem corpo poderia detectar um acesso directo e não mediado às qualidades primárias dos odores. Mas o contrário de incorporado é morto, não é omnisciente.

            Um termo que julgo apropriado para falar destas camadas de diferenças é o de articulação. Antes de passarem pela semana de treino, os alunos eram inarticulados, não só no senti do de lhes faltar uma sofisticação consciente e literária, ou de serem incapazes de falar sobre os odores; eram igualmente inarticulados num sentido mais profundo e mais importante: odores diferentes suscitavam o mesmo comportamento. Independentemente do que acontecesse no mundo, manifestava-se sempre o mesmo sujeito obstinadamente aborrecido. Um sujeito inarticulado é alguém que sente, faz e diz sempre o mesmo, independentemente do que os outros disserem (por exemplo, responder ego cogito a tudo o que afecta o sujeito é uma prova clara de mutismo inarticulado!). Um sujeito articulado, pelo contrário, é alguém que aprende a ser afectado pelos outros – não por si próprio. Um sujeito «por si próprio» não tem nada de particularmente interessante, profundo ou válido. Este é o limite de uma definição comum – um sujeito só se torna interessante, profundo ou válida quando ressoa com os outros, quando é efectuado, influenciado, posta em movimento por novas entidades cujas diferenças são registradas de formas novas e inesperadas. Articulação, portanto, não significa capacidade para falar com autoridade – veremos mais adiante que um discurso autorizado pode servir para dizer sempre a mesma coisa – mas ser afectado por diferenças. A principal vantagem do termo articulação não é a sua associação, em certa medida ambígua, a capacidades linguísticas ou sofisticação; é antes a sua capacidade para trazer a lume os componentes artificiais e materiais que permitem progressivamente adquirir um corpo. Parece-me apropriado afirmar que o kit de odores «articula» percepções das pupilas, fragrâncias da indústria e demonstrações do professor. Se a diferença é o que produz sentido, então engarrafar odores puros em frasquinhos, abri-los numa determinada ordem, começando com contrastes mais marcados até chegar, depois de muitos ensaios, a contrastes mais suaves, é uma forma de dar voz – isto é, um como aquilo que, por causa da artificialidade do instrumento, possibilita que as diferenças do mundo sejam acumuladas naquilo que, a princípio, pareciam ser conjuntos arbitrários de contrastes. Depois de treinados os narizes, a palavra «violeta» carrega finalmente a fragrância da violeta e de todas as suas tonalidades químicas. Através da materialidade dos instrumentos da linguagem, as palavras finalmente transportam mundos. O que dizemos, sentimos e fazemos é desencadeado por diferenças registradas no mundo. A semelhança não é o único meio de incorporar mundos nas palavras – como se prova pelo facto de a palavra violeta não cheirar a violeta, ou de a palavra «cão» não ladrar -, embora isto não signifique que as palavras pairem arbitrariamente sobre um mundo indizível de objectos. Além do mimetismo, a linguagem dispõe de vastíssimos recursos para se fixar na realidade. Ao contrário do famoso enunciado de Wittgenstein (que, nessa ocasião, devia ter-se remetido ao silêncio), o que não pode ser dito pode ser articulado.

            A vantagem decisiva da articulação em relação a exactidão da referência é que a primeira nunca termina, enquanto que a segunda sim. Uma vez validada a correspondência entre a afirmação e a situação em causa, nada mais há a acrescentar – excepto no caso de surgir alguma dúvida torturante sobre a fidelidade que corrompa a qualidade da correspondência. Não se verifica semelhante trauma no caso da articulação, pois aqui não se espera que os relatos convirjam numa versão única que feche a discussão com uma afirmação, mera réplica do original. Também não há dúvida torturante sobre a fidelidade da articulação (embora haja escrúpulos morais profundos, como veremos, para distinguir estados articulados de estados inarticulados). Num maravilhoso caso de loucura paradoxal, aqueles que imaginam que as afirmações tem uma correspondência simples com o mundo perseguem um objectivo absolutamente autocontraditório: querem calar-se e ser tautológicos, ou seja, repetir exactamente no modelo o original. Isto é, evidentemente, impossível, e daí o esforço constante dos epistemólogos – e o seu constante fracasso, a sua constante infelicidade. Já as articulações podem facilmente proliferar sem deixarem de registrar diferenças. Pelo contrário, quanta mais contraste se acrescenta, a mais diferenças e mediações se fica sensível. As controvérsias entre cientistas destroem afirmações que tentam desesperadamente reproduzir matters of fact[4]; mas reforçam as articulações, e reforçam-nas bem. Se acrescentarmos ao treino de odores, que expôs tantas discrepâncias entre narizes, todas as controvérsias entre fisiologistas sobre os receptores olfactivos e gustativos, a discussão não terá fim, nem as controvérsias ficarão sem objectivo, como se o julgamento de gosto tivesse perdido o rumo, destituído dos seus fundamentos de qualidades primárias: ficarão, simplesmente, mais interessantes. Será tanto mais assim se ao treino juntarmos a história cultural da detecção do odor, tal como Corbin imaginou (Corbin, 1998), ou se tomarmos o peso das estratégias comerciais e industriais para monopolizar os mercados através da diferenciação de perfumes. Quanto mais mediações melhor para adquirir um corpo, ou seja, para se tornar sensível aos efeitos de mais entidades diferentes (ver a «materiologia» do filósofo francês François Dagognet; especialmente Dagognet, 1989). Quanto mais controvérsias articulamos, mais vasto se torna o mundo.

            Este resultado é totalmente imprevisto pela concepção tradicional de sujeitos que registram o mundo através de afirmações exactas sobre ele, convergentes num mundo único. «Ah», suspira o sujeito tradicional, «se ao menos conseguisse libertar-me deste corpo de vistas curtas e flutuar pelo cosmos, liberto de todos os instrumentos, veria o mundo tal como é, sem palavras, sem modelos, sem controvérsias, em silêncio, contemplativo». «A sério?», responde o corpo articulado, com alguma surpresa benévola, «para que queres estar morto? Por mim, prefiro estar vivo, e por isso quero mais palavras, mais controvérsias, mais contextos artificiais, mais instrumentos, para me tornar sensível a cada vez mais diferenças. O meu reino por um corpo mais incorporado!».

            Escapar-nos-á, porém, o verdadeiro impacto da noção de articulação enquanto não definirmos o que é que é articulado. Não podem ser «palavras», como se a articulação fosse um termo puramente logocêntrico. O kit de odores não é feito de palavras, tal como não é o professor, nem a instituição que forma os narizes, nem o cromatógrafo, nem os corpos profissionais da química orgânica e sintética. Não podem ser «coisas», se por coisa entendermos uma substância definida por qualidades primárias, por exemplo a estrutura ternária dos perfumes ou o código de ADN para fabricar receptores olfactivos; pois, nesse caso, os corpos que são afectados por essas diferenças terão desaparecido completamente e, com eles, a articulação. Seguindo de perto o Whitehead de Isabelle Stengers, habituei-me a usar o termo proposições para descrever aquilo que é articulado. Este termo conjuga três elementos fundamentais: a) denota uma obstinação (posição), que b) não tem uma autoridade definitiva (e apenas uma pro-posição) e c) pode aceitar negociar-se a si própria para formar uma com-posição sem perder solidez.

            Estes três aspectos estão ausentes da ideia de «afirmações referentes a matters of fact através da frágil ponte da correspondência». Os matters of fact são obstinados, inegociáveis. Quanto as afirmações, o melhor que conseguem fazer é dissolver-se na tautologia, a cópia não sendo mais do que o modelo. O pior defeito da noção de afirmação, contudo, é a sua infelicidade constitutiva: quando interpretam matters of fact, as afirmações nada dizem enquanto não disserem a coisa em si – o que não podem fazer, naturalmente, falhando portanto os seus objectivos, sentindo-se inseguras e vazias; e, por consequência, nunca obtém bons instrumentos para acumular o mundo nas palavras, deixando os epistemólogos zangados e frustrados. Com afirmações, nunca haveremos de compor um mundo que seja simultaneamente sólido, interpretado, controverso e dotado de sentido. Com proposições articuladas, esta composição progressiva de um mundo comum (ver mais adiante) torna-se, pelo menos, pensável (Latour, 1999a).

            Dizer que os odores são proposições articuladas em parte pelo treino, pelo kit de odores e por todas as outras instituições não é o mesmo que dizer que são «coisas» – qualidades primárias – nomeadas em «palavras» pela actividade de catalogação (arbitrária ou constrangida socialmente) de um sujeito humano. É esta a principal distinção filosófica que o leitor terá que aceitar provisoriamente, querendo teorizar o corpo de uma forma nova: a articulação dos perfumes faz alguma coisa aos perfumes em si. Isto é ao mesmo tempo óbvio, se tivermos em conta as extraordinárias transformações que os perfumes sofrem nas mãos da indústria química e das culturas da moda, e difícil de aceitar, porque nos arriscamos a ficar sem a obstinada renitência dos químicos que existem «no mundo» independentemente do que nós, humanos, lhes fizermos. Sejamos prudentes, e mantenhamos o nosso relato afastado da atração do «bom senso» (que é tão diferente do senso comum). O lado negro do construtivismo social – o idealismo – surge apenas quando a descrição tradicional de afirmações e questões de facto é encenada: se uma afirmação erra, falta-lhe referência; caso tenha uma referência exacta, também acaba por ser como se não existisse, porque é puramente redundante. Só a propósito das afirmações é que perguntamos «é real ou construído?», questão que parece profunda e, mais, política e moralmente fundamental para manter uma ordem social habitável. Para as proposições articuladas, tal objecção é completamente irrelevante e um pouco estranha, porque quanto mais artifícios estiverem presentes, mais sensorium, mais corpos, mais afeições, mais realidades serão registradas (Latour, 2002). A realidade e a artificialidade são sinônimas, não antônimas. Aprender a ser afectado significa isso mesmo: quanto mais se aprende, mais diferenças existem.

            Não é agora ocasião para desenvolver estes tópicos metafísicos (mas veja-se Latour, 1999b e Stengers, 1996). Por agora, necessitamos apenas de uma imagem ou de uma metáfora para nos centrarmos no problema do corpo. Dizer que o mundo é feito de proposições articuladas é começar por imaginar linhas paralelas, as proposições, que correm na mesma direção num fluxo laminar, e que posteriormente, devido a determinada predisposição, vão criando intersecções, bifurcações, fendas que criam muitos remoinhos, transformando o fluxo laminar num fluxo turbulento. Esta metáfora rudimentar apresenta uma única vantagem: ajuda-nos a contrastar com a outra venerável metáfora do frente a frente entre uma mente subjectiva que fala por palavras sobre um mundo exterior. Já esta, pelo menos tão imperfeita como a minha, tem a enorme desvantagem de nos forçar a concebermos uma única relação, a de um jogo de soma zero entre as representações na mente e a realidade no mundo: neste braço de ferro, o que quer que a mente acrescente as suas representações, perde-o o mundo, que fica apenas desvirtuado. Quando o mundo é representado com exactidão, a mente e a sua subjectividade tornam-se redundantes.

            Entre proposições articuladas, ao invés, não existe semelhante jogo de soma zero; tornando-se mais sensíveis a diferenças, todos os participantes podem ganhar. Recorrerei ao termo multiverso, tão bem usado por James, para designar este mundo: o multiverso designa o universo liberto da sua prematura unificação. É tão real como o universo, mas, enquanto este só consegue registrar as qualidades primárias, o multiverso registra todas as articulações. O universo é feito de essências, o multiverso, para usar uma expressão deleuziana, ou tardiana (Tarde, 1999 reedição)[5], é feito de hábitos. Como veremos na secção final, isto não significa que abandonemos a unidade, uma vez que não passamos de um universo para mundos múltiplos – continuamos a falar sobre o multiverso. Significa antes que não desejamos uma unificação que seria conduzida sem os cuidados devidos. Para sermos bem «versados» no mundo, para o fazer girar – vertere – todo de uma vez, suspeitamos, precisamos de muito mais trabalho do que a imposição completamente implausível de qualidades primárias.

            Deslocado, então, o problema de ter um corpo para o de «dar conta de um multiverso de proposições articuladas» (recorrendo a minha gíria), devemos dedicar alguma atenção a dificuldade que pode deitar por terra todos os nossos esforços de redescrição, deixando o corpo ser arrastado pela torrente das comuns «conversas do corpo», divididas entre a fisiologia e a fenomenologia. Será correcto falar de proposições em vez de afirmações; mas qual é a diferença entre proposições bem e mal articuladas? Até termos uma resposta, a definição de corpo como «aprendizagem de ser afectado» há-de parecer mais outro apelo a multiplicidade, outra tentativa pós-moderna de romper as formas tradicionais de falar sobre natureza e sociedade, corpo e alma.

            Por agora, é forçoso reconhecer que a tradicional descrição de afirmações, matter of fact e correspondência, tem lidado bastante bem com esta questão normativa: se uma afirmação não corresponde a um estado de coisas, é falsa; se corresponde, é verdadeira. Se o gato está no tapete, confirma-se a afirmação «0 gato está no tapete». Independentemente da implausibilidade ou exequibilidade desta descrição do acto de referência, este será sempre preferido as proposições articuladas, simplesmente porque, a esta luz, parece lidar com a diferença entre verdadeiro e falso – para não dizer entre bem e mal -, algo que a nova descrição, mais realista, não consegue fazer. Pretendo tratar desta objecção na secção seguinte, praticando um pouco do que chamaria epistemologia política. Terminado este percurso, concluirei propondo outra solução para a teorização do corpo.

2. O PRINCÍPIO DE FALSIFICAÇÃO DE STENGERS-DESPRET

            Se o mundo é feito de proposições, e se a acção do conhecimento for concebida como articulação, não nos faltam posições normativas. Pelo contrário, há a possibilidade de recriar um princípio de falsificação mais afinado, mais discriminatório e mais aguçado do que aquele que Karl Popper definiu. Da obra de Isabelle Stengers e da sua colega Vinciane Despret emerge um quadro coerente para uma epistemologia política normativa alternativa, que pode ser resumida nos termos apresentados a seguir[6].

2.1. O científico é um ingrediente raro na ciência

            Primeiro, «conhecer» não é resultado automático de uma metodologia geral adequada a todo o serviço: é, pelo contrário, um acontecimento raro. Sendo fundamental distinguir a ciência boa da má, ou o que é científico do que não é, não há forma de fazer estas distinções de uma vez por todas. Não há, principalmente, forma de definir a partida, relativamente a todos os campos de investigação, se tem a vocação para serem científicos ou se hão-de sempre falhar, façam o que fizerem. Nos sete (pequenos) volumes das suas Cosmopolitiques, Stengers insiste que o raro sucesso de uma determinada ciência não é facilmente transportável para outra instância qualquer. Isto é particularmente verdadeiro quando passamos das ciências naturais para as sociais ou humanas (ver mais adiante). O conhecimento interessante é sempre um esforço arriscado que tem que começar do nada para cada nova proposição em causa. Esta primeira característica entra em contradição com a maior parte das pressões normativas da filosofia da ciência. Embora muitos epistemólogos possam concordar que o sonho de uma metodologia científica genérica é uma falácia, não deixariam, no entanto, de ambicionar princípios suficientemente genéricos para garantir que alguns domínios de investigação sejam mais científicos do que outros in toto. O projecto de Popper foi concebido, por exemplo, para garantir que fosse traçada uma demarcação clara entre ciência e disparates, e para distinguir, dentro das ciências, os frutos sãos dos frutos apodrecidos. O chibolet[7] de Stengers-Despret visa cortar não só por dentro das ciências (mesmo das mais duras), mas também aceitar diligências articuladas interessantes, que os outros cortes teriam simplesmente deixado bastante de fora da ciência. Estas disputas nada tem de surpreendente: por definição, as epistemologias políticas são feitas para discordar sobre tais limites, incluindo a demarcação entre ciência e política (Latour, 1999a, b).

2.2. Científico significa interessante

            Segundo, para ser científico, de acordo com a nova definição de S-D, o conhecimento tem que ser interessante. Como tantos estudos sobre os cientistas em acção tem verificado, às qualificações de «É cientifico?» os cientistas muitas vezes acrescentam: «Talvez seja, mas é interessante?». Fecundidade, produtividade, riqueza, originalidade são características fundamentais de uma boa articulação (Rheinberger, 1997). «Chato», «repetitivo», «redundante», «deselegante», «meramente correcto», «estéril», são adjectivos que designam uma má articulação. É, pois, importante disponibilizar uma pedra de toque que capture a noção mais discriminatória e aguçada que os próprios cientistas usam, em vez de usar outras que podem impressionar os leigos, mas nunca são usadas pelos homens das batas brancas nos bancos de laboratório. A noção de articulação presta-se facilmente a este fim graças ao seu significado linguístico. Opor conhecimentos inarticulados e articulados é, na verdade, opor expressões tautológicas a expressões não redundantes. Em vez de se dizer «A é A», ou seja, emitir duas vezes a mesma expressão, um laboratório científico articulado dirá «A é B, é C, é D», implicando o que uma coisa é no fado ou no destino de muitas outras coisas. Esta característica distingue-se – contrasta – com a teoria da verdade científica como correspondência, que será, no mínimo, condenada a tautologia: não faz mais do que, como vimos, repetir o original com o mínimo de deformação possível («A é A»). Por si, este defeito bastaria para recusar a teoria, que só tem sido sustentada por razões políticas (Latour, 1999b). Diferira, neste ponto, o chibolet de S-D do critério popperiano? Para já, ainda não difere muito, pois também Popper poderia dizer que as proposições têm que ser interessantes, isto é, devem ter a capacidade de por em risco a teoria. Para perceber a diferença entre as duas pedras de toque temos que considerar a terceira característica que define o tipo de risco de que trata cada um deles.

2.3. Científico significa arriscado

            Para ser interessante (portanto, científico; e, assim, estar em posição de esperar pela ocorrência possível, mas nunca garantida, de uma boa articulação) um laboratório tem que se por em risco. Isto não significa apenas, como para Popper ou Lakatos, que o laboratório deva procurar as instâncias experimentais mais capazes de por em causa a teoria. De acordo com os princípios de S-D, tal não seria suficientemente arriscado – nem que tivéssemos forma de eliminar todas as restantes dificuldades apontadas por Kuhn e vários psicólogos, relativamente à implausibilidade liminar da existência de uma atitude falsificacionista entre os cientistas praticantes. O verdadeiro risco é fazer com que as questões que se põem sejam requalificadas pelas entidades alvo da experimentação. Não é só a instância empírica da teoria que deve ser falsificada, mas também a teoria, o próprio programa de investigação do cientista criativo, o aparato técnico, o protocolo. Em vez da pergunta denunciadora – «Responde “sim” ou “não” quando lhe faço uma pergunta?» (sendo que a falsificação só pode desejar uma pergunta “não” que desencadeie de novo a busca, enquanto que perguntas “sim” não provariam nada) – O critério S-D implica que o cientista diga: «Será que lhe estou a fazer as perguntas certas? Terei concebido o contexto laboratorial que me permite alterar rapidamente as perguntas que faço, dependendo da resistência da sua resposta às minhas questões? Ter-me-ei tornado sensível a possibilidade de que reaja a artefactos e não às minhas questões?» (Stengers, 1997b). O principio falsificacionista de Popper abandona apenas o falso sonho de correspondência, deixando no entanto ao comando o cientista que ainda detém o incrível privilégio de fazer perguntas nos seus próprios termos, como na fantasia do mestre-escola de Kant. O princípio S-D implica que o cientista ponha igualmente em causa o privilégio de estar ao comando. As duas avaliações são distintas: podemos colocar questões falsificáveis, de modo a passar no exame de Popper, mas ainda assim falhar penosamente quando confrontados com as exigências de S-D.

2.4. Procurar o que é recalcitrante em humanos e não-humanos

            Assim apresentado, o risco de uma boa articulação revela a quarta originalidade da pedra de toque de S-D: procura ser aplicável tanto às ciências naturais como às sociais. Não por imaginar uma metodologia geral – ver o primeiro ponto – mas, precisamente, porque não imagina uma metodologia geral que ou desclassificaria as ciências sociais como irrecuperavelmente não-científicas, ou as submeteria à mera importação das ciências naturais, aparentemente mais bem sucedidas. As ciências sociais podem ser tão científicas – no novo sentido de S-D – como as naturais, na condição de correrem o mesmo risco, o que significa repensar os seus métodos e reformar os seus contextos de cima a baixo, conforme o que disserem aqueles que eles articularem. O princípio geral de S-D fica então assim: concebe as tuas pesquisas de forma a que maximizem a recalcitrância daqueles que interrogas.

            Mas a intuição verdadeiramente revolucionária da epistemologia de S-D é ter mostrado que este mandamento é, paradoxalmente, mais difícil de aplicar a humanos que a não-humanos. Ao contrário destes últimos, os humanos, quando confrontados com a autoridade científica, tem grande tendência a perder tudo o que tem de recalcitrante, comportando-se como objectos obedientes. Só oferecem afirmações redundantes aos investigadores: reconfortando-os com a crença de que produziram factos «científicos» robustos e que imitaram a grande solidez das ciências naturais! A única grande descoberta da maior parte da psicologia, sociologia, economia, psicanálise, segundo S-D, é que, impressionados pelas batas brancas, os humanos transmitem obedientemente objectivação: imitam literalmente a objectividade. Ou seja, deixam de se «objectar» à pesquisa, ao contrário dos objectos naturais bona fide, que, totalmente desinteressados pelas pesquisas, obstinadamente se «objectam» a ser estudados e fazem explodir com grande serenidade as questões formuladas pelos investigadores – quando não os seus laboratórios! Totalmente contra-intuitivo (veja-se, por exemplo, a posição oposta defendida por Hacking, 1999), este resultado faz, no entanto, todo o sentido: o desenvolvimento das ciências sociais não tem sido contrariado pela resistência dos humanos a ser tratados como objectos, mas antes pela complacência que manifestam em relação a programas de investigação científica que tornam mais difícil para o cientista social perceber rapidamente quais são os artefactos da concepção no caso dos humanos do que dos não-humanos… Os laboratórios de ciências humanas raramente explodem!

2.5. Proporcionar ocasiões para diferir

            A consequência paradoxal da filosofia da ciência de S-D é que «científico» significa dar a voz àquilo que ainda a não tem. Até agora, é a melhor forma de honrar a palavra «logos», que tantos cientistas acrescentaram a sua disciplina – ou o termo, ainda mais ajustado, «grafos». Se há uma fisio-logia, uma psico-logia, uma socio-logia, uma glacio-logia, uma etno-grafia, uma geo-grafia, etc., é porque existem contextos laboratoriais onde as proposições podem ser articuladas de forma não redundante. Como tão bem revela a etimologia destas disciplinas, falar e escrever não são propriedade de cientistas que proferem afirmações sobre as entidades mudas do mundo, mas antes uma propriedade das proposições bem articuladas em si, de disciplinas inteiras.

            E com isto chegamos à quinta característica dos princípios de falsificação de S-D que corta violentamente por dentro das ciências – ao contrário de todas as epistemologias que classificam disciplinas inteiras numa única hierarquia, habitualmente ordenada da física teórica à pedagogia… Diz-se que a maior parte dos protocolos são científicos porque os cientistas se envolvem tão pouco quanto possível nas interações com entidades que se movem com a mínima interferência possível desses mesmos cientistas. O ideal comum de ciência é então composto por um cientista desinteressado que deixa entidades completamente mudas e não-interferidas percorrerem automaticamente sequências de comportamento. Mas, segundo S-D, este arranjo do senso comum é receita certa para o desastre: um cientista desinteressado que se abstém de interferir com entidades desinteressadas produzirá articulações totalmente desinteressantes, ou seja, redundantes! O caminho para a ciência implica, pelo contrário, um ou uma cientista apaixonadamente interessado/ a, que proporciona ao seu objecto de estudo as ocasiões necessárias para mostrar interesse, e para responder as questões que lhe coloca recorrendo às suas próprias categorias. É aqui que o chibolet de S-D corta de maneira diferente dos princípios falsificionistas de Popper: a maior parte dos arranjos que este aprovaria, por garantirem instâncias de falsificação empírica satisfatórias, são lixo para S-D, porque falham no cumprimento de três condições mínimas de cientificidade: o cientista está interessado? Os elementos em estudo estão interessados? As articulações são interessantes? Isto não salva nem condena disciplinas no seu todo. Antes selecciona resultados específicos, artigos, cientistas, laboratórios dentro de disciplinas que, em vez de arrumados numa ordem hierárquica una, formam uma espécie de arquipélago de ligações heterárquicas, forçando cientistas, filósofos e leigos a decidir, caso a caso, se determinada peça científica é válida ou não (para um magnífico exemplo deste arquipélago, no caso específico da etologia, disciplina intermediária entre as ciências naturais e sociais, ver Strum e Fedigan, 2000; e Despret, 2002).

2.6. Nem distância nem empatia

            Para avaliarmos correctamente a originalidade do critério de S-D, devemos entender que não se trata de um novo apelo a uma ciência mais empática ou mais generosa que seja capaz de superar a fria, reducionista e severa necessidade da objectividade. E muito menos se trata de um contributo tipicamente mais «feminino» para uma epistemologia «dominada pelos homens». Este critério corta, e corta tanto como qualquer chibolet concebido por um homem! Aquilo que cumpre é imensamente mais produtivo do que apelar à empatia, e é esta a sexta característica da teoria de S-D: mostra que nem a distância nem a empatia definem a ciência bem articulada. Podemos não conseguir registrar as contraquestões daqueles que interrogamos, ora por estarmos muito distanciados, ora por os dissolvermos na nossa empatia. Para serem úteis, distância e empatia têm que se subordinar a mais este critério: ajudam, ou não, a maximizar a ocasião para que o fenômeno em estudo proponha as suas próprias questões, contra as intenções iniciais do investigadorincluindo, naturalmente, as suas generosas intenções «empáticas»? Partindo desta formulação, deve ser claro que evitarmos influências e preconceitos é uma forma muito pobre de lidar com um protocolo. Pelo contrário, devemos ter muitos preconceitos e influências, para os por em risco no dispositivo laboratorial e garantir que existam as ocasiões de manipulação de modo a que as entidades mostrem do que são capazes. A paixão, as teorias ou os preconceitos não são maus em si mesmos; apenas se tornam maus quando não oferecem ao fenômeno ocasiões para diferir.

            É neste ponto que S-D fazem sentido para a maior parte dos estudos sobre a ciência na medida em que fornecem uma filosofia positiva para a massa de mediações revelada nas investigações sobre a prática científica: quanto mais mediações melhor. Isto nada tem a ver com a velha tese de Duhem-Quine, dita da «subdeterminação» – como se a tarefa a cumprir ainda fosse distribuir entre o que os cientistas e o mundo dizem de acordo com a metáfora do jogo de soma-zero criticado na primeira secção. Pelo contrário, quanto mais os cientistas trabalham, mais arranjos artificiais concebem, mais intervêm, mais apaixonados são, e mais hipóteses oferecem aos fenômenos para se tornarem articulados através dos seus «logos» e «grafos». Também nada tem a ver com uma versão empática da ciência, porque quando os fenômenos divergem também ganham distância em relacção ao repertório, dramaticamente escasso, de simpatias e antipatias que o cientista possuía inicialmente. O equívoco deve-se ao significado de «distância». A distância que devemos investigar não é entre observador e observado – exotismo barato -, mas entre os conteúdos do mundo antes e depois da pesquisa. Portanto, nem a distância nem a empatia são bons indicadores de que se fez boa ciência; é-o apenas este critério: será que temos, agora, alguma distância entre o novo repertório de acções e aquele com que começamos? Se sim, não foi tempo perdido; se não, gastou-se dinheiro em vão, e não interessa quão «científicos », no sentido tradicional, pareciam os resultados.

2.7. Generalizações boas e generalizalizações más

            Científico, nas mãos de S&D, é um adjectivo que define uma articulação entre proposições permitindo que estas sejam mais articuladas. Isto é, que produzam «diários» e «bonecos» menos redundantes, modificando cada vez mais os ingredientes que compõem o multiverso, o seu repertório de acções, as suas competências e performances e, assim, as questões que suscitam entre todos aqueles, cientistas e não-cientistas, que com eles contactam. Com esta nova definição pouco sobra da antiga máxima «a ciência é aquilo que proporciona uma imagem exacta do mundo». Retem-se, no entanto, a maior parte dos aspectos identificados pelos esforços pioneiros de Popper e Lakatos para romper as limitações da versão pictórica – e por isso redundante – de ciência: a ciência e a actividade criativa e imaginativa onde são sistematicamente postas em causa as anteriores versões do multiverso. Por motivos políticos que não cabe aqui discutir, Popper e Lakatos subestimaram o nível a que os protocolos científicos em si mesmos tinham que ser reconfigurados. Mas falta responder a uma objecção: por que razão é melhor passar de proposições menos articuladas para proposições mais articuladas? A definição de ciência mais tradicional não diz precisamente o oposto – apresentar leis sintéticas e coerentes que reúnam, da forma mais econômica, numa única teoria, fenômenos muito dispersos? Não deveria a ciência avançar para menos proposições articuladas?

            É esta a sétima característica do princípio de S-D, a mais interessante, porque introduz uma nova divisão entre duas versões de generalizações que antes eram indistinguíveis: apresentar explicações tão gerais quanto possível é uma coisa; outra é eliminar versões alternativas. A importância que S-D atribuem à passagem de proposições menos articuladas para proposições mais articuladas permite-lhes distinguir formas boas e más de generalizar. Boas generalizações são as que permitem relacionar fenômenos muito diferentes, criando assim mais reconhecimento de diferenças inesperadas através do envolvimento de poucas entidades nas vidas e destinos de muitas outras; as más são aquelas que, porque conseguiram obter tanto sucesso localmente, tentam produzir uma generalidade, não através da relação com novas diferenças, mas antes desqualificando como irrelevantes as diferenças restantes.

            Os genes, por exemplo, podem ser implicados em tantos aspectos do comportamento e do desenvolvimento que se tornam ingredientes obrigatórios para enriquecer todas as descrições de meia dúzia de ciências; ou, nas mãos daqueles que se auto-intitulam «eliminacionistas», podem servir para passar por cima das mesmas disciplinas tidas como arcaicas e obsoletas porque formulam questões num vocabulário não-genético. Em vez de permitir que o gene altere muitas situações, e que a definição do que faz seja modificada por esses diversos encontros, os eliminacionistas desperdiçam todas as hipóteses de aprender numa experiência o que faz realmente um gene (Kupiek e Sonigo, 2000). Para onde quer que vão, farão sempre a mesma coisa, ou seja, literalmente, reproduzir-se-ão a si mesmos tautologicamente (ver a crítica do discurso da acção dos genes em Fox-Keller, 1999 e Lewontin, 2000)! A generalização deveria ser um veículo para percorrer tantas diferenças quanto possível – maximizando as articulações – não uma forma de diminuir o número de versões alternativas do mesmo fenômeno. Esta característica relaciona-se com a primeira: a única razão por que os epistemólogos imaginaram uma metodologia genérica para produzir conhecimento científico reside no seu eliminativismo. Só retirando do multiverso a maior parte dos fenômenos se pode imaginar uma teoria geral que é bem sucedida sempre que repete o mesmo argumento sem ser veementemente contradita. O contrário desta posição não é abstermo-nos de fazer generalizações, mas sim, de acordo com S-D, uma generalização que corra mais este risco: aceito ser simultaneamente geral e compatível com versões alternativas do multiverso (Stengers, 1997a, b; 1998). Nas mãos de Prigogine e Stengers, esta tem sido uma forma poderosa para distinguir ramos e resultados da Física devido ao problema do tempo: que podemos fazer de uma disciplina, a Física, que só pode lidar com o «pequeno pormenor» do tempo fazendo de conta que não existe (Prigogine e Stengers, 1988)[8]? Popper teria deixado passar a maior parte da Física; Prigogine e Stengers não, porque este gênero de Física atemporal pagou o seu sucesso obliterando uma característica obstinada: a irreversibilidade do tempo. Para Stengers, é um preço demasiado alto a pagar.

2.8. Permitir um mundo comum

            Chegados a este ponto, recearão talvez os leitores que a pedra de toque de S-D tenha deixado de servir especificamente a ciência e o objecto. Se esta pede maior articulação, descrições mais arriscadas, mais compatibilidade, poderia igualmente ser aplicada a ordem política, sobretudo por insistir em fazer falar o maior número possível de entidades e evitar o eliminativismo. É justamente este o ponto fulcral de qualquer epistemologia política e a razão por que a quarta característica – aplicar-se tanto as ciências naturais como as sociais – se torna tão essencial.

            Não devemos esquecer que qualquer epistemologia é uma epistemologia política: nunca se trata apenas de elaborar uma teoria do conhecimento, pois toda a epistemologia constitui também um princípio para mapear uma divisão entre ciência e política (Shapin e Schaffer, 1985; Latour, 1999b). Popper inventou toda a sua maquinaria simplesmente para poder retirar o marxismo e a psicanálise da lista de ciências bona fide e assim combater os inimigos da Sociedade Aberta. S-D não se afastam desta respeitável tradição, excepto no ponto em que o seu princípio (e apenas delas, até agora) não concede que se pré-julgue a forma correcta de separar ciência e política, ciências boas e ciências más, e políticas boas e políticas más (para não dizer ciências más aliadas a políticas más, ciências boas acrescentadas a políticas boas, ciências más aliadas a políticas boas, e ciências boas aliadas a políticas más). A grande eficácia do principio de S-D é reabrir todo o pandemônio que os seus colegas prematuramente tentaram ordenar num conjunto de ciências indisputáveis, e de outro de ciências falsas disputáveis, misturadas com políticas mal reputadas. A oitava característica e a mais radical, e é a que tem aplicação mais imediata: os humanos (ocidentalizados e cientificizados) tendem a obedecer a autoridade científica de uma forma que nunca se verificaria em qualquer outra situação mais evidentemente política. Foi este facto que induziu em erro a maior parte dos cientistas quando tentaram aplicar as ciências naturais às sociais: o que viam como extensão milagrosa da objectividade científica era, na realidade, uma mera consequência da aura de total indisputabilidade que prematuramente atribuíram às ciências.

            A experiência de Stanley Milgram só é possível em nome da ciência, para usar um dos topos de S-D. Noutra situação qualquer, os estudantes teriam esmurrado Milgram, revelando assim uma vigorosa e amplamente compreendida desobediência à autoridade[9]. O facto de os estudantes terem obedecido à tortura de Milgram não prova que escondessem uma qualquer tendência inata para a violência; revela apenas a capacidade dos cientistas para produzir artefactos que nenhuma outra autoridade consegue obter, porque são indetectáveis. Demonstração disto é Milgram ter morrido sem perceber que a sua experiência nada tinha provado sobre a tendência inata do Americano médio para a obediência – excepto que conseguiam parecer obedecer a uma bata branca! Sim, podemos alcançar artefactos em nome da ciência; mas, em si mesmo, este não é um resultado científico, antes é uma consequência da forma como se lida com a ciência (veja-se o caso notável de Glickman, 2000). Levado a sério, o princípio de S-D significa que o corte correcto não é o que distingue a ciência da política, mas o que distinguirá inarticulação (ciência redundante ou política redundante) de proposições bem articuladas. Quer se trate de humanos ou de não-humanos, devemos recorrer aos arranjos que garantam a maximização da disputabilidade.

            O chibolet de Popper e Lakatos tem um problema: falha redondamente neste passo, pois leva-os a tentar isolar a ciência indisputável dos caprichos da política. Poderiam fazer de algumas ciências indisputáveis, mas bloqueavam quando, para sua grande surpresa – e, por vezes, grande horror, as discussões continuavam… Enquanto para S-D a continuação das discussões – ou seja, a proliferação de outras versões duradouras da composição do multiverso, mesmo depois de algumas ciências se terem pronunciado – significa simplesmente usando aqui os meus próprios termos, que a tarefa de compor o mundo comum não foi prematuramente simplificada. Ja não é nosso desejo que venham cientistas das ciências duras definir qualidades primárias – os ingredientes essenciais que fazem realmente o mundo, ingredientes invisíveis aos olhos comuns, visíveis apenas pelo olhar desincorporado e desinteressado dos cientistas – enquanto os homens e mulheres comuns ficam limitados às qualidades secundárias, que não se referem ao que o mundo é, apenas às suas imaginações culturais e pessoais.

            O princípio de S-D, por seu turno, convida-nos a dispensar de vez a noção de factores desconhecidos que nos fariam agir sem que deles tenhamos consciência. Não que S-D recusem explicações não conscientes para os comportamentos; mas estas explicações que recorrem a forças invisíveis devem ser introduzidas cuidadosamente na composição do mundo comum. Ou seja, deve permitir-se que aqueles que são assim explicados não sejam desqualificados como irrelevantes por razões que tem que ver não só com os seus sentimentos íntimos ou imaginações culturais – a isto Stengers chamou «tolerância intolerante» (Stengers, 1997a) – mas também com aquilo de que realmente é feito o multiverso. Não se pode chegar a nenhum mundo comum se aquilo que é comum já tiver sido decidido pelos cientistas, longe da vista daqueles cujas «comunalidades» estão assim a ser construídas (Latour, 1999b, cap. 5). Também neste ponto, o critério de senso comum divide as coisas de forma diferente do princípio de falsificação de Popper-Lakatos, que podia aceitar que a política tem que ver com valores, mas apenas na condição de que as questões de fato fossem removidas em segurança de quaisquer jogadas políticas. A epistemologia política lida sempre com a composição do mundo comum, tendo por isso a capacidade de distinguir entre boas e más articulações de ciência e política e não só entre boas e más ciências.

            A oitava e última característica faz do princípio de S-D, de separar boa e má ciência uma exigência extraordinariamente difícil, árdua e penosa, porque força os cientistas a levar muito a serio o exterior das suas ciências, além das condições em que os seus resultados podem ser compatibilizados ou incompatibilizados com o resto do colectivo. Ao contrário do que por vezes imaginam os guerreiros da ciência, a recente atenção que tem merecido a prática científica não afrouxou os constrangimentos da prática científica – como se o slogan «vale tudo» tivesse conquistado a Academia – mas, pelo menos nas mãos das duas inovadoras filósofas: aumentou dramaticamente o custo da ciência boa. Os resultados da aplicação do seu chibolet correspondem a algo de que todos os cientistas e apoiantes da ciência sempre suspeitaram: a ciência boa é rara; e a sua ocorrência é um acontecimento que deve ser estimado como um milagre, comentado e disseminado como uma obra de arte.

CONCLUSÃO: QUANTOS SÃO OS CORPOS QUE DEVEMOS TER?

                Como pode esta passagem por uma nova epistemologia política ajudar a teorizar o corpo de outra forma? Tal como a maior parte das questões colocadas à luz do predicado modernista, a questão do corpo depende da definição do que é a ciência. Isto é particularmente relevante neste caso, porque qualquer «conversa do corpo» parece necessariamente conduzir à fisiologia e, posteriormente, à medicina. Se a ciência ficar entregue aos seus próprios dispositivos para definir por si aquilo de que é feito o corpo, sem mais averiguações ou sem possibilidade de recurso a uma instância superior, como se pertencesse ao reino das qualidades primárias, será impossível defender outras versões do que é um corpo. Então, quando o biopoder for dominante, de acordo com a terrível previsão de Michel Foucault e seus seguidores, deixará de ser possível defender algo como uma democracia. Ficaremos condenados ou à espiritualidade – que nos diz que o corpo é o que fica abandonado à «matéria» enquanto os aspectos essenciais da pessoa são libertados das suas amarras -, ou a fenomenologia – que, nos diz que a incorporação vivida possui algo que nenhum cientista frio e objectivo jamais compreenderá, e que deve ser protegido das arrogantes pretensões da ciência. As duas posições, no entanto, retiram-se de combate cedo demais, porque se apressam a por no mesmo saco corpos, fisiologias, materialidades, medicina e qualidades primárias. Se mudarmos a concepção de ciência e levarmos a sério o papel articulador das disciplinas, será impossível acreditar no dualismo de um corpo fisiológico em confronto com um outro fenomenológico. Mas a grande lição de Stengers e Despret é realizarem uma coisa que os estudos sobre a ciência tem evitado: propor outra pedra de toque normativa para distinguir a ciência boa da má.

            Um exemplo esclarecerá este ponto. O neurofilósofo Paul Churchland (Churchland, 1986), meu antigo colega na Universidade de San Diego, traz na carteira uma foto a cores da sua mulher. Isto não tem nada de extraordinário, excepto o facto de se tratar da imagem colorida do cérebro da mulher. Mais: Paul afirma categoricamente que dentro de alguns anos seremos capazes de reconhecer as formas ocultas da estrutura cerebral com um olhar mais apaixonado do que o que dirigimos para os narizes, a pele ou os olhos! Paul, sem dúvida, alinha aqui com os eliminativistas: desde que tenhamos uma forma de compreender as qualidades primárias (no caso dele, a macro-estrutura do cérebro; mas, para outros cientistas ainda mais avançados, poderiam ser as micro-estruturas dos neurônios individuais, as sequências de ADN do próprio cérebro, ou mesmo a estrutura atômica da biofísica desse ADN, ou, como diria Hans Moravcek, o conteúdo informativo de todo o corpo medido em gigabits!) podemos eliminar como irrelevantes todas as outras versões do que é ser um corpo, ou seja, ser alguém. O exemplo da imagem a cores de Pat Churchland revela bem o disparate que é afirmar que «além da» estrutura cerebral objectiva há ainda um modo subjectivo, antigo, talvez mesmo arcaico, em vias de se tornar obsoleto, de olhar para os rostos que são normalmente capturados, por exemplo, em fotografias. Estaríamos assim a conceder aos Churchland o incrível privilégio de definir as imagens cerebrais como formadoras das indisputáveis qualidades primárias do mundo – aquilo de que o universo é feito – deixando os humanistas, amantes e cientistas sociais arcaicos acrescentar a esta trama do universo as qualidades secundárias subjectivas, como miúdos que fazem gatafunhos nas paredes laváveis do infantário. Tamanho derrotismo representa uma cedência excessiva aos neurofilósofos e ignorará todas as características interessantes que foram cilindradas por este dualismo corpo/alma. É aqui que desejo que os estudos sobre a ciência, fortalecidos com uma dose valente de epistemologia normativa, acrescentem o seu contributo às múltiplas disputas em torno das qualidades primárias (veja-se, por exemplo, Varela e Shear, 1999).

            À partida, andar com a foto dos nossos «entes queridos» na carteira não tem nada de particularmente subjectivo. Toda a história da fotografia demonstra como as nossas experiências foram modeladas através das inovações técnicas, comerciais e estéticas das câmaras (Jenkins, 1979), exactamente do mesmo modo que os narizes foram treinados pela «malette a odeurs» e outros feitos da indústria de perfumes. Não estamos, portanto, em posição de afirmar que há pessoas normais que andam com fotografias dos seus entes queridos, e cientistas loucos que pretendem reduzir a subjectividade humana a simples neurônios, passeando TACs por aí. A própria ideia de «lado subjectivo» é um mito obtido pelo apagamento de todos os recursos extra-somáticos criados para nos tornar afectados pelos outros de formas variadas. A fenomenologia do corpo vivido é tão possibilitada por artefactos materiais como o é o laboratório de neurociências do Salk Institute. Mas, além disso, e mais importante, porque não apresentar o trabalho de Churchland da mesma forma que tratei o kit de odores, na primeira secção? Afirmei que, devido ao treino, o formando «aprendia a ter um nariz», a «ser um nariz», detectando pequenas diferenças que anteriormente não o afectavam. Porque não recorrer a esta fórmula para dar conta do esforço de Paul? Também ele esta a aprender a ser sensível, através da mediação de instrumentos, à diferenças até aqui indetectáveis no rodopiar de electrões do cérebro da sua adorada mulher. Paul pode estar absolutamente certo quando afirma que nos devíamos todos tornar sensíveis às diferenças eléctricas nos cérebros de cada um, e que esta sensibilidade, este aprender a ser afectado, dar-nos-á um entendimento mais rico e mais interessante da personalidade dos outros do que as meras expressões faciais. Com o kit de odores habitamos um mundo de uma enorme riqueza de odores; com TACs a cores habitamos um mundo eléctrico de uma enorme riqueza atômica.

            Paul pode estar certo, mas pode estar errado; e é aqui que a pedra de toque de Stengers e Despret corta, e corta com precisão. É profundamente distinto tratar Churchland como o reducionista e o eliminativista que reclama ser ou considerar que a sua tentativa introduz mais um contraste, mais uma articulação ao que é ter um corpo. A primeira corresponde à visão tradicional sobre a ciência: há qualidades primárias; podemos ser reducionistas; um dos níveis dos fenômenos pode ser um fundamento; ou, caso contrário, pode eliminar outro. A segunda corresponde ao que podemos designar como uma perspectiva jamesiana, whiteheadiana ou dos estudos sobre a ciência: não há uma qualidade primária; nenhum cientista pode ser reducionista; as disciplinas apenas podem acrescentar coisas ao mundo, e quase nunca subtrair-lhe fenômenos. Para a perspectiva tradicional, Churchland ou está certo ou está errado; isto é, a camada de fenômenos a que se agarra é integralmente independente do seu equipamento, laboratório, filiações disciplinares, ideologias. As qualidades primárias só são detectáveis por cientistas invisíveis e desincorporados, reduzidos mais do que a cérebros, mais do que a átomos, a puro pensamento.

            Na versão dos estudos sobre a ciência, porém, aquilo que os neurofilósofos reclamam é consideravelmente acessível. Os neurofilósofos podem elaborar contratos interessantes, ou podem repetir resultados redundantes produzidos por outros cientistas que de facto não compreendem, porque esqueceram os apertados constrangimentos instrumentais a que alguns factos isolados devem a sua existência – é isto que defende, por exemplo, não caridade de Edelman (Edelman, 1994). Os cientistas sentir-se-ão protegidos pelo princípio popperiano da falsificação desde que manipulem os dados de forma razoavelmente científica; mas não têm onde se esconder do chibolet de Stengers-Despret. Não há falsificação empírica que deixe impune um cientista acusado de ter eliminado das duas descrições a maior parte dos contrastes que deveria ter fixado, caso tivesse sido suficientemente «cuidadoso». Se mesmo a Física mais dura pode ser castigada por eliminar o «pequeno pormenor» do tempo irreversível, que tratamento merecerá a muito mais mole neurofilosofia, que obliterou o que é dar sentido a um rosto individual ou detectar uma cor?

            É este o resultado paradoxal de muitos dos estudos sobre a ciência dedicados ao corpo: não é uma luta contra o reducionismo, nem a reivindicação por um corpo completo, pessoal, subjectivo que deve ser respeitado em vez de «cortado em pedaços». É, pelo contrário uma demonstração da impossibilidade de um cientista reducionista ser reducionista! Nos laboratórios dos «batas brancas» mais eliminativistas proliferam os fenômenos: conceitos, instrumentos, novidades, teorias, bolsas, preços, ratos, e outros homens e mulheres de batas brancas… O reducionismo não é um pecado de que os cientistas tenham que se redimir, mas um sonho tão inatingível como estar vivo e não ter corpo. Nem sequer o hospital consegue reduzir o paciente a um «mero objecto», como tão bem documentaram Annemarie Mol, Charis Cussins, Stefan Hirschauer, Marc Berg e muitos outros (Cussins, 1998; Mol e Law, 1994; Berg e Mol, 1998). Quando se contacta com os hospitais, a nossa «rica personalidade subjeetiva» não é reduzida a um simples monte de carne objectiva: pelo contrário, aprendemos a ser afectados por massas de agências até então desconhecidas não só por nós, mas por médicos, enfermeiros, administrações, biólogos, investigadores que acrescentam ao nosso pobre corpo inarticulado conjuntos completos de novos instrumentos – incluindo talvez alguns TACs. Ao puzzle do multiverso, soma-se agora o puzzle do corpo dobrado: como podemos conter tanta diversidade, tantas células, tantos micróbios, tantos órgãos, dobrados de tal forma que, nas palavras de Whitehead, «o múltiplo age como um só»? Não há subjectividade, introspecção ou sentimento inato que chegue aos calcanhares da fabulosa proliferação de afectos e efeitos que o corpo aprende quando é tratado por um hospital (Pignarre, 1995). Tornamo-nos mais, e não menos. Não há cientista capaz de reduzir esta proliferação a apenas alguns fenômenos básicos, elementares, genéricos sob seu controlo.

            É também aqui que o argumento normativo de Stengers-Despret é tão importante: abandonar a distinção entre corpos objectivos e subjectivos, qualidades primárias e secundárias, negar à ciência a possibilidade de subtrair os fenômenos ao mundo, venerar as instituições hospitalares que nos permitem ser afectados, não significa abandonar a diferença entre proposições bem e mal articuladas. Pelo contrário, trata-se de estender as linhas de combate para dentro das próprias ciências, como sempre defendeu Donna Haraway. Não esqueçamos que o que coloca a questão do corpo na dianteira das ciências sociais é, por um lado, o encontro do feminismo, dos estudos sobre a ciência e de uma razoável quantidade da reinterpretação foucaultiana da sujeição e, por outro lado, a expansão da bio-indústria por todos os recantos da nossa existência quotidiana. Esta política do corpo, o combate em torno do biopoder – que, como Foucault previu, representa certamente a grande questão do século -, só pode ser sustentada se concedermos à ciência o direito imperial de definir por si todo o reino de qualidades primárias, relegando a militância para a província marginal dos sentimentos subjectivos. O biopoder deveria ter um biocontrapoder. Sem ele, «as conversas sobre o corpo» hão-de ser sempre tão eficazes como as canções dos escravos em louvor da liberdade. Há uma vida para o corpo depois dos estudos sobre a ciência e do feminismo, mas não é a mesma que a do passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERG, Marc; MOL, Annemarie (1~98), Differences in Medicine. Unraveling Practices, Techniques and BodIes, Durham: Duke Umversity Press.

CHURCHLAND, Patricia Smith (1986), Neurophilosophy. Toward a Unified Science, Cambridge Mass: MIT Press.

CORBIN, Alain (1998), The Foul and the Fragrant: Odor and the French Social Imagination

Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

CUSSIN, Charis (1998), «Ontological Choreography: Agency for Women Patients in an Infertility Clinic» in Marc Berg; Annemane Mol (orgs.), Differences in Medicine: Unravelling Practices, Techniques and Bodies, Durham e Londres: Duke University Press, 166-20l.

DAGOGNET,. François (1989), Eloge de l’ objet. Pour une philosophie de la marchandise, Paris: Vrin.

DESPRET, Vinciane (1996), Naissance d’ une theorie ethologique, Paris: Les Empecheurs de Penser en Rond.

– (1999), Ces emotions qui nous fabriquent. Ethnopsychologie de l’authenticite Paris· Les

Empecheurs de Penser en Rond. ‘ .

– (2002), Quand Ie loup habiera avec l’agneau, Paris: Les Empecheurs de Penser en Rond.

EDELMAN, Gerald M. (1994), Biologie de la conscience, Paris: Editions Odile Jacob.

FOX-KELLER, Evelyne (1999), Le role des metaphores dans les progres de la biologie, Paris: Les Empecheurs de Penser en Rond.

GLICKMAN, Stephen (2000), «Culture, Disciplinary Tradition and the Study of Behaviour: Sex Rats and Spotted. Hyenas», in Shirley Strum; Linda Fedigan (orgs.), Primate Encounters, Chicago: The University of Chicago Press, 275-294.

HACKING, Ian (1999), The Social Construction of What?, Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

HIRSCHAUER, Stephan (1991), «The Manufacture of Bodies in Surgery» Social Studies of Science 21: 279-319. “

JAMES, William (1996) [1907], Essays in Radical Empiricism, Londres: University of Nebraska Press.

KNORR-CETINA, Karin (1999), Epistemic Cultures. How the Sciences Make Knowledge Cambridge Mass.: Harvard University Press. ‘ ,

KUPIEC, Jean-Jacques; SONIGO, Pierre (2000), Ni Dieu ni Gene, Paris: Le Seuil-Collection Science Ouverte.

JENKINS, Reese V. (1979), In:ages and Enterprises. Technology and the American Photographic Industry. 1839-1925, Balttmore: The John Hopkins University Press.

LATOUR, Bruno (1996), Petite reflexion sur Ie culte modeme des dieux faitiches, Paris: Les Empecheurs de Penser en Rond.

– (1999a), Politiques de la nature. Comment faire entrer les sciences en democratie, Paris: La

Decouverte.

– (1999b), Pandora’s Hope. Essays on the Reality of Science Studies, Cambridge, Mass.: Harvard

University Press.

– (2002), «Gabriel Tarde and the End ofthe Social», in P. Joyce (org.), The Social in Question. New Bearings in the History and the Social Sciences, Londres: Routledge, 117-132.

LEWONTIN, Richard (2000), The Triple Helix. Gene, Organism and Environment, Cambridge,

Mass.: Harvard University Press.

MILGRAM, Stanley (1974), Obedience to Authority. An Experimental View, Nova lorque: Harper Torch Books.

MOL, Annemarie; lAW, John (1994), «Regions, Netwo·rks, and Fluids: Anaemia and Social Topology», Social Studies of Science, 24 (4), 641-672.

PIGNARRE, Philippe (1995), Les deux medecines. Medicaments, psychotropes et suggestion therapeutique, Paris: La Decouverte.

PRIGOGINE, I1ya; STENGERS, Isabelle (1988), Entre Ie temps et l’etemife, Paris: Fayard.

RHEINBERGER, Hans-Jorg (1997), Toward a History of Epistemic Things. Synthetizing Proteins in the Test Tube, Stanford: Stanford University Press.

SHAPIN, Steven; SCHAFFER, Simon (1985),Leviathan and. the Air-Pump. Hobbes, Boyle and the Experimental Life, Princeton: Princeton University Press.

STENGERS, Isabelle (1996), Cosmopolitiques Tome 1: La guerre des sciences, Paris: La Decouverte & Les Empecheurs de Penser en Rond.

– (1997a), Cosmopolitiques Tome 7: Pour en finir avec la tolerance, Paris: La Decouverte & Les

Empecheurs de Penser en Rond.

– (1997b), Power and Invention. With a Foreword by Bruno Latour «Stengers’ Shibboleth»,

Minneapolis: University of Minnesota Press.

– (1998), «La guerre des sciences: Et la paix?», in B. Jurdant (org.), Impostures scientifiques. Les

malenten s de l’affaire Sokal, Paris: La Decouverte, 268-292.

– (2002}., Penser avec Whitehead, Paris: Gallimard.

STRUM, Shirley; FEDIGAN, Linda (orgs.) (2000), Primate Encounters, Chicago: University of

Chicago Press.

TARDE, Gabriel (1999), Monadologie et Sociologie, Paris: Les Empecheurs de Penser en Rond [reedição].

– (1969), On Communication and Social Influence. Selected Papers, Terry N. Clark (org.), Chicago: University Of Chicago Press.

TEIL, Genevieve (1998), «Devenir expert aromaticien: Y a-t-i1 une place pour le gout dans les goilts alimentaires ?», Revue de Sociologie du Travail, 503-522.

VARELA, Francisco; SHEAR, Jonathan (orgs.) (1999), The View from Within. First-Person Approaches to the Study of Consciousness, Thorverton: Imprint Academic.

WHITEHEAD, Alfred North (1920), Concept of Nature, Cambridge: Cambridge University Press.


[1] Tradução de Gonçalo Praça. Este texto corresponde a uma comunicação apresentada ao simpósio «Theorizing the Body», organizado por Madeleine Akrich e Marc Berg em Paris, em Setembro de 1999. A versão original foi publicada numa edição especial da revista Body and Society, vol. 10 (2/3), pp. 205-229 (2004). [N. do T.]

[2] Em francês no original [N. do T.].

[3] Em francês no original [N. do T.].

[4] Manteve-se a expressão inglesa matter of fact (que neste contexto se poderia traduzir por «matéria de facto», «questão de facto», «realidade», «na realidade»), seguindo os passos do próprio Bruno Latour, no seu Politiques de la Nature: «Matters of fact: os ingredientes indiscutíveis da sensação ou da experimentação; mantém-se o termo inglês para apontar a bizarria política da distinção […] entre o que é discutível (teoria, opinião, interpretação, valores) e o que é indiscutível (os dados sensoriais, os data)» (Latour, 1999a: 356) [N. do T.]

[5] Gabriel Tarde, mais velho que Durkheim, definiu uma sociologia alternativa que quase desapareceu

(ver Tarde, organizado por Clark, 1969), tendo, no entanto, vindo a ser recuperada porque se presta a

uma ligação bastante mais próxima da biologia do que a sua homóloga tradicional.

[6] Formada em Química, Isabelle Stengers (Stengers, 1996; 1997a, b; 1998) destacou-se como uma das mais importantes filósofas da ciência do mundo francófono. Professora em Bruxelas, trabalhou extensivamente com Ilya Prigogine, e desenvolveu uma filosofia muito original, primeiro da Física, depois da Biologia e daquilo que designou por “cosmopolíticas”. Publicou recentemente uma obra-prima sobre A. N. Whitehead (2002). Vinciane Despret (Despret, 1996; 1999; 2002), formada em Psicologia e professora de Filosofia em Liege, igualmente na Bélgica, deu bom uso empírico as ideias de Stengers e tem desenvolvido uma extraordinária série de estudos de Psicologia e Etologia.

[7] Um «chibolet» é urn princípio de distinção e identificação de algo ou alguém, uma palavra-passe, uma pedra-de-toque. O termo tem origens bíblicas (Juízes, 12: 5-6) [N. do. T.].

[8] Toda a obra de Ilya Prigogine – sozinho ou em conjunto com Stengers – tem sido dedicada a compreender as alterações que a Física deve sofrer quando o tempo – ou seja, o processo – nela for reintroduzido, e deixar de ser encarado como dimensão completamente reversível, como é habitual, pelo menos, desde Newton.

[9] Realizada na sequência da descoberta dos horrores cometidos pelos nazis, a experiência de Milgram tentou verificar se a obediência à autoridade poderia fazer com que o americano médio se comportasse como o seu semelhante alemão (Milgram, 1974). Os sujeitos-alvo da experiência foram instruídos para infligir choques eléctricos a um falso aluno, a quem deveriam ensinar várias coisas. Horrorizado, Milgram verificou que os sujeitos não deixavam de infligir formas extremas de tortura, justificando estes actos com as ordens que tinham recebido. Stengers e Despret reexaminaram esta experiência e concluíram que o horror subjaz à sua própria concepção.

Deixe um comentário

Acima ↑