Querem obrigar-nos a governar, não vamos cair nessa provocação

1. Fisionomia das insurreições contemporâneas. / 2. Que não há insurreições

Um homem morre. Foi morto pela polícia, diretamente, indire- tamente. É um anónimo, um desempregado, um “dealer” disto, daquilo, um estudante, em Londres, em Sidi Bouzid, Atenas ou Clichy-sous-Bois. Dizem que é um “jovem”, tenha 16 ou 30 anos. Dizem que é um jovem porque socialmente ele não é nada, e que houve um tempo em que nos tornávamos alguém quando chegá- vamos a adultos, onde os jovens eram precisamente aqueles que ainda não eram nada. Um homem morre, um país subleva-se. Uma coisa não é causa da outra, apenas o detonador. Alexandros Grigoropoulos, Mark Duggan, Mohamed Bouazizi, Massinissa Guermah – o nome do morto torna-se, nesses dias, nessas semanas, o nome próprio do anonimato geral, da comum despossessão. E a insur- reição é antes de mais feita por aqueles que nada são, daqueles que vogam pelos cafés, nas ruas, na vida, pela faculdade, pela Internet. Ela agrega todos os elementos flutuantes, plebeu de- pois pequeno-burguês, que a ininterrupta desagregação social segrega até mais não. Tudo o que é considerado marginal, ultra- passado ou sem futuro, regressa ao centro. Em Sidi Bouzid, em Kasserine, em Thala, são esses os “loucos”, os “perdidos”, os “bons em nada”, os “freaks”, que primeiramente espalharam a notícia da morte do seu companheiro de infortúnio. Eles subiram para cima das cadeiras, das mesas, dos monumentos, em todos os locais públicos, em toda a cidade. Eles sublevaram com as suas arengas quem estava disposto a ouvi-los. Logo atrás, foram os estudantes do secundário que entraram em ação, esses que não alimentam nenhuma esperança de carreira. A sublevação dura alguns dias ou alguns meses, conduz à queda do regime ou à ruína de todas as ilusões de paz social. 35 Ela própria é anónima: sem líder, sem organização, sem rei- vindicações, sem programa. As palavras de ordem, quando as há, parecem esgotar-se na negação da ordem existente, e são abruptas: “Bazem!”, “O povo quer a queda do sistema!”, “Estamo-nos a cagar!”, “Tayyp, winter is coming”. Na televisão, nas ondas de rádio, os responsáveis martelam a sua retórica de sempre: são bandos de “çapulcu”, de vândalos, terroristas saídos de nenhures, certamente a soldo do estrangeiro. Aquele que se levanta não tem ninguém para colocar no trono em subs- tituição, à parte talvez de um ponto de interrogação. Não são os bas-fonds, nem a classe operária, nem a pequena-burguesia, nem as multidões que se revoltam. Nada que apresente uma homogeneidade suficiente para admitir um representante. Não há nenhum novo sujeito revolucionário cuja emergência tenha escapado, até então, aos observadores. Quando se diz que “o povo” está na rua, não se trata de um povo que existisse pre- viamente, pelo contrário, trata-se do povo que previamente fal- tava. Não é “o povo” que produz a sublevação, é a sublevação que produz o seu povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real entretanto desaparecidas. Se as revoluções do passado prometiam uma vida nova, as insurreições contemporâneas fornecem as ferramentas. Os giros de ultras do Cairo não eram grupos revolucionários antes da “revolução”, eram apenas bandos capazes de se organizar para enfrentar a polícia; é por terem tido um papel tão eminente aquando da “revolução” que eles se viram força- dos a colocar, em plena situação, as questões habitualmente entregues aos “revolucionários”. Aí reside o acontecimento: não no fenómeno mediático, que se forjou para vampirizar a revolta por via da sua celebração exterior, mas nos encontros que efetivamente se produziram ali. Eis o que é bem menos espetacular do que “o movimento” ou “a 36 revolução”, mas mais decisivo. Ninguém poderá dizer aquilo de que um encontro é capaz.É desta forma que as insurreições se prolongam, molecu- larmente, impercetívelmente, na vida dos bairros, dos coletivos, dos squats, dos centros sociais, dos seres singulares, no Brasil como em Espanha, no Chile como na Grécia. Não porque elas ponham em marcha um programa político, mas porque elas colocam em andamento devires-revolucionários. Porque aquilo que se viveu fica a brilhar com uma tal intensidade que aqueles que o experienciaram tornam-se-lhe fiéis, não se querem sepa- rar, antes construir de facto o que agora faz falta à sua vida de antes. Se o movimento espanhol de ocupação de praças, uma vez desaparecido o ecrã-radar mediático, não tivesse sido seguido por todo um processo de mises en commum e de auto-organização, nos bairros de Barcelona e de outros sítios, a tentativa de destruição da ocupação de Can Vies, em Junho de 2014, não teria sido votada ao fracasso por três dias de motins de todo o bairro de Sants, e não se teria visto toda uma cidade participar, ato contínuo, na reconstrução do lugar atacado. Teria havido apenas alguns ocupas a protestar no meio da indiferença generalizada contra uma enésima expulsão. O que aqui se constrói não é nem a “sociedade nova” no seu estado embrionário, nem a organização que derrubará finalmente o poder para constituir um novo, é antes a potência coletiva que, por via da sua consistência e da sua inteligência, condena o poder à impotência, frustrando uma a uma todas as suas manobras. Os revolucionários são frequentemente aqueles que as re- voluções apanham mais desprevenidos. Mas há, nas insurreições contemporâneas, qualquer coisa que os desconcerta particular- mente: elas já não partem de ideologias políticas, mas de verdades éticas. Aqui estão duas palavras cuja aproximação soa a 37 qualquer espírito moderno como um oximoro. Estabelecer o que é verdadeiro é o papel da ciência, não é assim?, que não tem nada que ver com as nossas normas morais e outros valores contingentes. Para o moderno, há o Mundo de um lado, ele próprio de outro, e a linguagem para superar o abismo. Uma verdade, como nos foi ensinado, é um ponto sólido sobre o abismo – um enunciado que descreve adequadamente o Mundo. Oportunamente esquecemos a lenta aprendizagem ao longo da qual adquirimos, com a linguagem, uma relação com o mundo. A linguagem, longe de servir para descrever o mundo, ajuda-nos sobretudo a construir um. As verdades éticas não são, assim, verdades sobre o Mundo, mas as verdades a partir das quais nós nele permanecemos. São verdades, afirmações, enunciadas ou silenciosas, que se experimentam mas não se demonstram. O olhar taciturno que surge, punhos cerrados, nos olhos do pequeno chefe e que o desfigura durante um longo minuto é uma delas, e vale bem o tonitruante “temos sempre razão em revoltar-nos”. São verdades que nos ligam, a nós mesmos, ao que nos rodeia e uns aos ou- tros. Elas introduzem-nos de uma assentada numa vida comum, a uma existência não separada, sem consideração pelos muros ilusórios do nosso Eu. Se os terranos estão prontos a arriscar a sua vida para que uma praça não seja transformada em parque de estacionamento como em Gamonal, em Espanha, que um jardim não se torne um centro comercial como em Gezi, na Turquia, que pequenos bosques não sejam transformados num aeroporto como em Notre-Dame-des-Landes, é mesmo porque aquilo de que gostamos, aquilo a que estamos ligados – seres, lugares ou ideias – também faz parte de nós, que esse nós não se reduz a um Eu que habita durante o tempo de uma vida um corpo físico limitado pela sua pele, o todo enfeitado pelo conjunto das pro- priedades que acredita ter. Quando se toca no mundo, somos nós próprios que somos atacados. 38 Paradoxalmente, mesmo quando uma verdade ética se enuncia como recusa, o facto de se dizer “Não!” coloca-nos de pés assentes na existência. Não menos paradoxalmente, o indivíduo descobre-se então tão pouco individual que basta por vezes que um só se suicide para que voe em estilhaços todo o edifício da falsidade social. O gesto de Mohamed Bouazizi imolando-se de- fronte do município de Sidi Bouzid comprova-o o suficiente. A sua potência de deflagração reside na afirmação despedaçante que encerra. Ele diz: “a vida que nos é dada não merece ser vivida”, “não nascemos para nos deixarmos humilhar desta forma pela polícia”, “podem reduzir-nos à insignificância, mas nunca nos retirarão a parte de soberania que pertence aos vivos” ou ainda “vede como nós, nós os ínfimos, nós os pouco existentes, nós os humilhados, estamos para lá dos miseráveis meios pelos quais conservais fanaticamente o vosso poder decrépito”. Foi isto que se ouviu nitidamente naquele gesto. Se a entrevista televisiva de Waël Ghonim, no Egipto, após o seu sequestro por parte dos “ser- viços”, teve um tal efeito de reviravolta sobre a situação, foi porque do fundo das suas lágrimas explodia também uma verdade no coração de cada um. De igual modo, durante as primeiras semanas de Occupy Wall Street – antes que os habituais gestores de movi- mento instituíssem os seus pequenos “grupos de trabalho” encar- regues de preparar as decisões que a assembleia teria apenas de votar – o modelo das intervenções diante das 1500 pessoas lá presentes era este tipo que um dia tomou a palavra para dizer: “Hi! What’s up? My name is Mike. I’m just a gangster from Harlem. I hate my life. Fuck my boss! Fuck my girlfriend! Fuck the cops! I just wanted to say: I’m happy to be here, with you all” (“Olá! Como é que isso vai? O meu nome é Mike. Sou apenas um gan- gster de Harlem. Odeio a minha vida. Que se foda o meu patrão! Que se foda a minha namorada! Que se fodam os polícias! Só vos queria dizer: estou feliz por estar aqui, com todos vocês”). E as 39 suas palavras eram repetidas sete vezes pelo coro de “megafones humanos” que substituíam os microfones proibidos pela polícia. O verdadeiro conteúdo de Occupy Wall Street não era a reivindicação, colada ao movimento como um post-it sobre um hipopótamo, de melhores salários, de casas decentes ou de uma segurança social mais generosa, mas a repugnância pela vida que nos fazem viver. A repugnância por uma vida onde estamos todos sozinhos, sozinhos face à necessidade de cada um ganhar a sua vida, de se albergar, de se alimentar, de se divertir ou de se tratar. Repugnância pela forma de vida miserável do indivíduo metropolitano – desconfiança escrupulosa/ ceticismo refinado, conquistador/ amores superficiais, efémeros/ sexualização de- senfreada, em consequência, de qualquer encontro/ seguido de regresso periódico a uma separação confortável e desesperada/ distração permanente, portanto ignorante de si, portanto medo de si, portanto medo do outro. A vida comum que se esboçava em Zuccotti Park, em tendas, ao frio, à chuva, cercada pela po- lícia na praça mais sinistra de Manhattan, não era certamente la vita nuova inaugurada, mas apenas o ponto de onde se começava a tornar evidente a tristeza da existência metropolitana. Apercebíamo-nos, enfim juntos na nossa condição comum, da nossa igual redução ao grau de empreendedor de si. Esta mu- dança existencial foi o coração pulsante de Occupy Wall Street, enquanto Occupy Wall Street foi fresco e vivaz.O que está em jogo nas insurreições contemporâneas é a questão de saber o que é uma forma desejável de vida e não a natureza das instituições que a subjugam. Mas reconhecê-lo implicaria o reconhecimento imediato da nulidade ética do Ocidente. O que impediria que se colocasse a vitória deste ou daquele par- tido islâmico, após esta ou aquela rebelião, na conta do suposto atraso mental das populações. Haveria, pelo contrário, que 40 admitir que a força dos islamitas reside justamente no facto de a sua ideologia política se apresentar, antes de mais, como um sis- tema de prescrições éticas. Dito de outra forma, o seu maior su- cesso em relação aos outros políticos deve-se precisamente a não se colocarem de forma central no terreno da política. Poder-se-á então parar de choramingar ou de gritar bicho-papão de cada vez que um adolescente sincero prefira integrar as fileiras dos “jihadistas” em vez da multidão suicidária dos assalariados do sector terciário. E aceitaremos assim, de forma adulta, descobrir a carantonha que fazemos nesse espelho pouco abonatório. Na Eslovénia rebentou em 2012, na tranquila cidade de Maribor, uma revolta de rua que seguidamente inflamou uma boa parte do país. Uma insurreição neste país com ar quase helvético, eis algo desde logo inesperado. Mas o mais surpreendente é que o ponto de partida tenha sido a revelação de que à medida que os radares de velocidade se multiplicavam nas ruas da cidade, uma única empresa privada próxima do poder embolsava a quase totalidade das multas. Poderá haver algo menos “político”, como ponto de partida para uma insurreição, do que uma questão de radares de estrada? Mas poderá haver algo mais ético do que a recusa em se deixar tosquiar como um carneiro? É Michel Kolhaas no século XXI. A importância do tema da corrupção reinante, em praticamente todas as revoltas contemporâneas, atesta que estas são éticas antes de serem políticas, ou que são políticas precisamente naquilo que desprezam da política, onde se incluí a política radical. Enquanto ser de esquerda quiser di- zer: negar a existência de verdades éticas e substituir esta carência por uma moral tão frágil quanto oportuna, os fascistas poderão continuar a passar como única força política afirmativa, como os únicos que não se desculpam por viverem como vivem. Eles irão de sucesso em sucesso e continuarão a fazer convergir para eles próprios a energia das revoltas nascentes. 41 Talvez esteja também aí a razão do fracasso, sem isso in- compreensível, de todos os “movimentos contra a austeridade”, que deveriam nas condições atuais incendiar o horizonte e que, pelo contrário, se perpetuam numa Europa que tenta o seu dé- cimo frouxo relançamento. É que a questão da austeridade não é colocada no terreno em que de facto se situa: o de um brutal desacordo ético, um desacordo sobre o que é viver, o que é viver bem. Dizendo de forma sumária: ser austero, nos países de cul- tura protestante, é antes de mais tido como virtude; ser austero, numa boa parte do sul da Europa, é no fundo ser um pobre coita- do. O que se passa hoje não é apenas que alguns queiram impor a outros uma austeridade económica que os últimos não dese- jam. O que se passa é que alguns consideram que a austeridade é, em absoluto, uma boa coisa, ao passo que outros consideram, sem verdadeiramente o ousarem dizer, que a austeridade é, em absoluto, uma miséria. Limitar-se a lutar contra os planos de austeridade é não apenas acrescentar algo a este mal-entendido, mas também, por acréscimo, estar seguro de perder, ao admitir implicitamente uma ideia de vida que não nos convém. Não há que perscrutar demasiado o pouco entusiasmo das “pessoas” em se lançar numa batalha perdida à partida. O que é preciso é antes de mais assumir o verdadeiro desafio do conflito: uma certa ideia protestante de felicidade – ser trabalhador, poupado, sóbrio, ho- nesto, diligente, casto, modesto, discreto – que se pretende impor a toda a Europa. O que é necessário opor aos planos de austeridade é uma outra ideia de vida, que consista, por exemplo, em partilhar em vez de economizar, em conversar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em celebrar as vitórias em vez de estar à defensiva, em entrar em contacto em vez de permanecer na sua reserva. É imensurável a força que os movimentos indígenas do subcontinente americano recolheram ao assumir o buen vivir como afirmação política. Por um lado, isto traça um claro perfil 42 daquilo pelo que e contra o que se luta; por outro, abre a porta à descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “vida boa”, formas que por serem diferentes não são no entanto inimigas, pelo menos não necessariamente.

— 2— Que não há insurreições democráticas

A retórica ocidental não tem surpresas. Cada vez que uma sublevação de massas vem depor um sátrapa ainda ontem venerado em todas as embaixadas é porque o povo “aspira à democracia”. O estratagema é velho como Atenas. E ele funciona tão bem que até a assembleia do Occupy Wall Street considerou de bom-tom consagrar, em Novembro de 2011, um orçamento de 29 mil dóla- res para uma vintena de observadores internacionais ir contro- lar a regularidade das eleições egípcias. Ao que os camaradas da Praça Tahrir, que eles acreditavam estar dessa forma a ajudar, responderam: “Aqui no Egipto, não fizemos a revolução na rua com o simples objetivo de ter um Parlamento. A nossa luta – que pensamos partilhar convosco – é muito mais ampla do que a ob- tenção de uma democracia parlamentar bem oleada.” Não é pelo facto de se lutar contra um tirano que se luta pela democracia – tanto se pode lutar por um outro tirano, pelo califado ou pelo simples prazer de lutar. Mas sobretudo, se há algo que pouco tem a ver com qualquer princípio aritmético de maioria, são mesmo as insurreições, cuja vitória depende de critérios qualitativos – de determinação, de coragem, de confiança em si, de sentido estratégico, de energia coletiva. Se as eleições corporizam, há mais de dois séculos, o instrumento mais usado, depois do exército, para mandar calar as insurreições, é porque 43 os insurretos nunca são uma maioria. Quanto ao pacifismo que se associa tão naturalmente à ideia de democracia, também aqui convém dar a palavra aos camaradas do Cairo: “Aqueles que dizem que a revolução egípcia era pacífica não viram os horrores que a polícia nos infligiu, não viram tampouco a resistência e até a força que os revolucionários utilizaram contra a polícia para defender as suas ocupações e os seus espaços. Reconhecido pelo próprio Governo: 99 esquadras foram incendiadas, milhares de carros da polícia destruídos, e todas as sedes do partido dirigente foram queimadas.” A insurreição não respeita nenhum formalismo, nenhum dos procedimentos democráticos. Ela impõe, como qualquer manifestação de envergadura, a sua própria forma de utilização do espaço público. Ela é, como qualquer greve declarada, política do facto consumado. Ela é o reino da iniciativa, da cumplicidade prática, do gesto; as decisões, ela toma-as nas ruas, lembrando àqueles que o tenham esquecido que “popular” vem do latim populor, “arrasar, devastar”. Ela é a plenitude da expressão – nos cânticos, nas paredes, na palavra tomada, nos combates – e o vazio da deliberação. Talvez que o milagre da insurreição esteja nisto: ao mesmo tempo que dissolve a democracia enquanto problema, ela imediatamente configura algo para lá dela. Evidentemente que não faltam ideólogos, tais como Antonio Negri e Michael Hardt, que deduzam a partir dos levan- tamentos dos últimos anos que “a constituição de uma sociedade democrática está na ordem do dia” e se proponham a nos “tornar capazes da democracia”, ensinando-nos “os saberes, os talentos e os conhecimentos necessários ao governo de nós próprios”. Para eles, tal como o resume sem muita delicadeza um negrista espa- nhol: “De Tahrir à Puerta del Sol, da Praça Syntagma à Praça Catalunya, um grito se repete de praça em praça: «Democracia». Tal é o nome do espectro que hoje em dia percorre o mundo.” De facto, tudo iria bem se a retórica democrática fosse apenas uma 44 voz que emana dos céus e que se cola, vinda do exterior, a cada sublevação, por ação dos governos ou daqueles que lhes desejam suceder. Ouvi-la-íamos piedosamente, como a homilia do padre, rindo à gargalhada. Mas é forçoso constatar que esta retórica tem um efeito de captura real sobre as mentes, sobre os corações, sobre as lutas, como o mostra esse movimento “dos indignados” do qual tanto se falou. Escrevemos “dos indignados” entre aspas pois na primeira semana de ocupação da Puerta del Sol a referência era a Praça Tahrir e de modo nenhum o inofensivo opúsculo do socialista Stéphane Hessel, que defende uma insurreição cidadã das “consciências” como forma de exorcizar a ameaça de uma verdadeira insurreição. É apenas na sequência de uma operação de recodificação levada a cabo a partir da segunda sema- na de ocupação pelo “El País”, jornal ligado também ao Partido Socialista, que este movimento recebe o seu título choramingas, ou seja, uma boa parte do seu eco público e o essencial dos seus limites. O mesmo é válido também para a Grécia, onde aqueles que ocupavam a Praça Syntagma recusaram em bloco a etique- ta de “aganaktismenoi”, de “indignados”, que os media lhes ha- viam atribuído preferindo denominar-se como “movimento das praças”. “Movimento das praças”, na sua neutralidade factual, tomava melhor em conta a complexidade, ou mesmo a confusão, dessas estranhas assembleias onde os marxistas coabitavam com os budistas da via tibetana, e os fiéis do Syriza com os burgueses patriotas. A manobra espetacular é bem conhecida e consiste em tomar o controlo simbólico dos movimentos celebrando-os, num primeiro momento, por aquilo que eles não são, no intuito de melhor os enterrar chegado o momento certo. Ao atribuir-lhes a indignação como conteúdo, destina-os à impotência e à mentira. “Ninguém mente mais do que o homem indignado”, já constatava Nietzsche. Ele mente sobre a sua estranheza em relação àquilo sobre o qual se indigna, esquiva-se a qualquer responsabilidade 45 sobre aquilo que o toca. A sua impotência é postulada a fim de melhor se eximir de toda e qualquer responsabilidade quanto ao desenrolar das coisas; que depois é por ele convertida em afeção moral, em afeção de superioridade moral. Ele pensa que tem direitos, o infeliz. Se já vimos multidões coléricas fazer revoluções, nunca vimos massas indignadas fazer outra coisa que não protestar de forma impotente. A burguesia choca-se e depois vinga-se; já a pequena-burguesia indigna-se e depois volta para a sua farsa. A palavra de ordem que ficou associada ao movimento das praças foi “democracia real ya!”, pois a ocupação da Puerta del Sol foi iniciada por uma quinzena de “hacktivistas”, por ocasião da manifestação, que tomava aquele nome, convocada pela plataforma para 15 de Maio de 2011 – o “15M”, como se diz em Espanha. Não se tratava aqui de democracia direta, como nos conselhos operários, nem mesmo de verdadeira democracia à antiga, mas de democracia real. Sem surpresa, em Atenas o “movimento das praças” instalou-se à distância de uma pedrada do local da democracia formal, a Assembleia Nacional. Até aqui tínhamos ingenuamente pensado que a democracia real era esta que já aqui estava, tal como a conhecemos desde sempre, com as suas promessas eleitorais feitas para serem atraiçoadas, as suas salas de gravação denominadas “parlamentos” e as suas negociatas pragmáticas para enevoar o mundo em favor de diferentes lóbis. Mas para os “hacktivistas” do 15M a realidade da democracia era acima de tudo a traição da “democracia real”. Que tenham sido cybermilitantes a lançar este movimento não é indiferente. A palavra de ordem “democracia real” significa o seguinte: tecnologicamente, as vossas eleições que têm lugar uma vez a cada cinco anos, os vossos deputados rechonchudos que não sabem utilizar um computador, as vossas assembleias que fazem lembrar uma má peça de teatro ou uma feira barulhenta – tudo isso é obsoleto. Hoje em dia, graças às novas tecnologias de 46 comunicação, graças à Internet, à identificação biométrica, aos smartphones, às redes sociais, vocês estão completamente ultra- passados. É possível instaurar uma democracia real, isto é, uma sondagem permanente, em tempo real, da opinião da população, submetendo-lhe realmente qualquer decisão antes de a tomar. Um autor já o antecipava nos anos 20: “Poderíamos imaginar que um dia invenções subtis permitiriam a cada um exprimir a todo o momento as suas opiniões sobre os problemas políticos, sem sair de casa, graças a um aparelho que conseguisse gravar todas essas opiniões numa central onde não seria preciso fazer mais nada do que ler o resultado.” Ele via aí “uma prova da privatização absoluta do Estado e da vida pública”. E era, mesmo reunidos numa praça, essa sondagem permanente que deviam manifestar em silêncio as mãos levantadas ou baixas dos “indignados”, aquando das sucessivas tomadas de palavra. Até o velho poder de aclamar ou de vaiar tinha sido retirado à multidão. O movimento das praças foi, por um lado, a projeção, ou melhor, o embate no real, do fantasma cibernético da cidadania uni- versal e, por outro, um momento excecional de encontros, de ações, de festas e de recuperação em mãos de uma vida comum. Isto não podia a eterna microburocracia ver, entretida a tentar fazer passar os seus caprichos ideológicos como “posições da assembleia” ou a pretender tudo controlar, em nome de que cada ação, cada gesto, cada declaração deve ser “validado pela assembleia” para ganhar o direito de existir. Para todos os outros, este movimento liquidou definitivamente o mito da assembleia-geral, isto é, o mito da sua centralidade. Na primeira noite, a 16 de Maio de 2011, havia na Praça Catalunya em Barcelona 100 pessoas, no dia seguinte 1000, depois 10.000 e nos dois primeiros fins-de-semana havia 30.000 pessoas. Cada um pôde então constatar que quando somos tão numerosos já não há nenhuma diferença entre democracia direta e democracia representativa. A assembleia é o local onde somos 47 obrigados a ouvir parvoíces sem poder replicar, exatamente como em frente à televisão; para além de ser o local de uma teatrali- dade extenuante e tanto mais mentirosa quanto mais mimetiza a sinceridade, a aflição ou o entusiasmo. A extrema burocratização das comissões refreou até os mais resistentes, tendo sido necessárias duas semanas para que a comissão “conteúdo” parisse um documento intragável e calamitoso de duas páginas que resumia, segundo ela, “aquilo em que acreditamos”. Por esta altura, face ao ridículo da situação, alguns anarquistas submeteram a voto a hi- pótese de a assembleia se tornar um simples espaço de discussão e lugar de informação e não um órgão para tomada de decisões. A situação era cómica: pôr à votação o facto de se deixar de votar. Coisa ainda mais cómica: o escrutínio foi sabotado por trinta trotsquistas. E como este género de micro-políticos transpira tanto tédio quanto sede de poder, toda a gente acabou por se afastar das fastidiosas assembleias. Sem surpresas, muitos dos participantes de Occupy tiveram a mesmo experiência e chegaram à mesma conclusão. Em Oakland como em Chapel Hill, acabou por se considerar que a assembleia não tinha nenhum direito em validar o que este ou aquele grupo podia ou queria fazer, que ela era um local de partilha e não de decisão. Quando uma ideia emitida em assembleia vingava, era simplesmente porque um conjunto suficiente de pessoas a consideravam boa para lhe concederem os meios de a pôr em prática e não em virtude de qualquer princípio de maioria. As decisões vingavam ou não; elas nunca eram tomadas. Foi assim que na Praça Syntagma foi votada “em assembleia-geral”, num dia de Junho de 2011 e por vários milhares de indivíduos, a iniciativa de promover ações no metro; no dia aprazado, não se encontravam no local marcado nem vinte pessoas para agir efetivamente. É assim que o problema da “tomada de decisão”, obsessão de todos os democratas flipados do mundo, se mostra nunca ter sido outra coisa que não um falso problema. 48 Que tenha sido com o movimento das praças que o fetichismo da assembleia-geral atingiu um cúmulo em nada man- cha a prática assembleária. Trata-se apenas de saber que de uma assembleia não pode sair outra coisa que não o que já lá se en- contra. Quando se juntam milhares de desconhecidos que nada partilham, afora o facto de estarem ali, na mesma praça, não se pode esperar que daí saia mais do que a sua separação autoriza. Não se pode querer, por exemplo, que uma assembleia consiga gerar por si própria a confiança recíproca necessária para que se assuma em conjunto o risco de agir ilegalmente. Que uma coisa tão repugnante como uma assembleia-geral de coproprietários seja possível é algo que, desde logo, nos devia premunir contra a paixão das AG. Aquilo que uma assembleia atualiza é simplesmente o nível de partilha existente. Uma assembleia de estudantes não é uma assembleia de bairro, que por sua vez não é uma assembleia de bairro em luta contra a sua “reestruturação”. Uma assembleia de operários não é a mesma no início e no final de uma greve. E estas terão certamente pouco que ver com uma assembleia popular dos povos de Oaxaca. A única coisa que qualquer assembleia pode produzir, se o tentar, é uma linguagem comum. Mas quando a única experiência comum é a separação, somente a linguagem informe da vida separada será escutada. A indignação é então, efetivamente, o máximo de intensidade política à qual pode chegar o indivíduo atomizado, que confunde o mundo com o seu ecrã, da mesma forma que confunde os seus sentimentos com os seus pensamentos. A assembleia plenária de todos esses átomos, a despeito da sua comovente comunhão, não fará mais do que expor a paralisia induzida por uma falsa com- preensão da política e, acima de tudo, uma inaptidão para alterar o que quer que seja no curso do mundo. Como se uma infinidade de caras coladas contra uma parede de vidro olhassem embasbacadas o universo mecânico que continua a funcionar sem elas. O 49 sentimento de impotência coletiva, que sucedeu à alegria de se terem encontrado e contado, dispersou os proprietários de tendas Quechua tão infalivelmente como os bastões e o gás.E no entanto havia nestas ocupações qualquer coisa que ia além deste sentimento, precisamente tudo aquilo que não tinha o seu lugar no momento teatral da assembleia, tudo o que relevava da milagrosa aptidão dos vivos para habitar, para habitar o pró- prio inabitável: o coração das metrópoles. Nas praças ocupadas, tudo aquilo que a política desde a Grécia clássica relegou para a esfera, no fundo desprezada, da “economia”, da gestão doméstica, da “sobrevivência”, da “reprodução”, do “quotidiano” e do “trabalho”, afirmou-se ao invés como dimensão de uma potência política coletiva, que escapou à subordinação do privado. A capacidade de auto-organização quotidiana que aí prosperou e que chegou, nalguns sítios, a alimentar 3000 pessoas por refeição, a levantar uma aldeia em poucos dias ou a cuidar dos amotinados feridos, assinala talvez a verdadeira vitória política do “movimento das praças”. Ao que as ocupações de Taksim e de Maïdan terão acrescentado, no seu encalço, a arte de erguer barricadas e de confecionar cocktails Molotov em quantidades industriais. O facto de que uma forma de organização tão banal e sem surpresas como uma assembleia tenha sido investida de uma tal veneração frenética diz, no entanto, muito sobre a natureza dos afetos democráticos. Se a insurreição exprime primeiro a cólera e depois a alegria, a democracia direta, no seu formalismo, é antes de mais uma coisa de angustiados. Que nada se passe que não seja determinado por um processo previsível. Que nenhum acon- tecimento nos ultrapasse. Que a situação se mantenha à nossa altura. Que ninguém se possa sentir trapaceado ou em conflito aberto com a maioria. Que nunca ninguém seja obrigado a con- tar apenas com as suas próprias forças para se fazer ouvir. Que 50 não se imponha nada, a ninguém. Com esse fim, os vários dispo- sitivos da assembleia – da roda de palavra aos aplausos silenciosos – organizam um espaço estritamente aveludado, sem outras asperezas para além da sucessão de monólogos, desativando a necessidade de lutar por aquilo que se pensa. Se o democrata tem que estruturar a situação até este ponto é porque não confia nela. E se ele não tem confiança na situação é porque, no fundo, ele não é de confiança. É o seu medo de se deixar levar por ela que o condena a querer a todo o custo controlá-la, muitas vezes até a destruir. A democracia é acima de tudo o conjunto de procedi- mentos através dos quais se dá forma e estrutura a essa angústia. Não se trata de fazer o processo da democracia: não se faz um processo a partir de uma angústia. Só um desenvolvimento omnilateral da atenção – atenção não apenas ao que é dito, mas sobretudo ao que não é, atenção à forma como as coisas são ditas, ao que se lê nas faces como nos silêncios – nos pode libertar do apego aos procedimentos democráticos. Trata-se de fazer submergir o vazio que a democracia mantém entre os átomos individuais pela plena atenção de uns aos outros, por uma atenção inédita ao mundo comum. O desafio é substituir o regime mecânico de argumentação por um regime de verdade, de abertura, de sensibilidade ao que aqui está. No século XII, quando Tristão e Isolda se encontram de noite e conversam trata-se de um “parlamento”; quando as pessoas, ao acaso da rua e das circunstâncias, se agitam e se põem a falar é uma “assembleia”. Eis o que há que opor à “soberania” das assembleias gerais, à tagarelice dos parlamentos: a redescoberta da carga afetiva ligada à palavra, à palavra verdadeira. O contrário da democracia não é a ditadura, é a verdade. É justamente porque são momentos de verdade, onde o poder está nu, que as insurreições nunca são democráticas. 51

3—
Que a democracia não é mais do que o governo em estado puro

A “maior democracia do mundo” lança sem protestos de maior uma batida global contra um dos seus agentes, Edward Snowden, que teve a má ideia de revelar o seu programa de vigilância generalizada das comunicações. Nos factos, a maioria das nossas belas democracias ocidentais tornaram-se regimes policiais per- feitamente descomplexados, ao passo que a maior parte dos regimes policiais do nosso tempo arvoram orgulhosamente o título de “democracia”. Ninguém ficou lá muito assombrado pelo facto de um primeiro-ministro, como Papandreus, ter sido despedido sem pré-aviso por ter tido a ideia verdadeiramente exorbitante de submeter a política do seu país, quer dizer, da Troika, aos eleito- res. Tornou-se aliás costume na Europa suspender eleições se se antecipa um resultado incontrolável; isto quando não se obriga os cidadãos a votar de novo se o escrutínio não fornece o resultado cobiçado pela Comissão Europeia. Os democratas do “mundo livre” que se pavoneavam nem há vinte anos devem andar a arrancar os cabelos. Saber-se-á que a Google, confrontada com o escândalo da sua participação no programa de espionagem Prism, limitou-se a convidar Henry Kissinger a explicar aos seus assalariados que era necessário que se habituassem, que a nossa “segurança” tinha esse preço? Não deixa de ser divertido imaginar o homem de todos os golpes de Estado fascistas da década de 1970 na América do Sul a dissertar sobre a democracia frente a empregados tão cools, tão “inocentes”, tão “apolíticos” da sede da Google em Silicon Valley. Lembremos a frase de Rousseau em O Contrato Social: “Se houvesse um povo de deuses, ele governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito não serve aos homens.” Ou aqueloutra, mais cínica, de Rivarol: “Há duas verdades que nunca se 52 devem separar neste mundo: 1. Que a soberania reside no povo. 2. Que ele não deve nunca a exercer.” Edward Bernays, o fundador das public relations, começa- va assim o primeiro capítulo do seu livro Propaganda, intitulado “organizar o caos”: “A manipulação consciente, inteligente, das opiniões e dos hábitos organizados das massas desempenha um papel importante nas nossas sociedades democráticas. Aqueles que manipulam este mecanismo social impercetível formam um governo invisível que dirige verdadeiramente o país.” Foi em 1928. No fundo, o que se visa quando se fala em democracia é a identidade entre governantes e governados, quaisquer que sejam os meios pelos quais esta identidade é obtida. Donde a epidemia de hipocrisia e de histeria que grassa nas nossas terras. Em regime democrático, governa-se sem ter muito ar disso; os senhores enfeitam-se com atributos de escravo e os escravos crêem-se senhores. Uns, exercendo o poder em nome da felicidade das massas, encontram-se condenados a uma hipocrisia constante; e os outros, pensando dispor de um “poder de compra”, de “direitos” ou de uma “opinião” espezinhada todo o ano, tornam-se histéricos. E como a hipocrisia é por excelência a virtude burguesa, sempre se liga qualquer coisa de irremediavelmente burguês à democracia. Neste ponto, o sentimento popular não se deixa enganar. Quer se seja democrata à la Obama ou furioso partidário dos conselhos operários, qualquer que seja a forma como se con- ceba o “governo do povo por si próprio”, o que recobre a questão da democracia é sempre a questão do governo. Esse é o seu postulado e o seu impensado: é necessário um governo. Governar é uma forma muito particular de exercer o poder. Governar não é impor uma disciplina sobre um corpo, não é fazer respeitar a Lei sobre um território supliciando os infratores como no Antigo Regime. Um rei reina. Um general comanda. Um juiz 53 julga. Governar é outra coisa. É conduzir os comportamentos de uma população, de uma multiplicidade que é necessário ve- lar, como um pastor em relação ao seu rebanho, para maximizar o potencial e orientar a liberdade. É, portanto, tomar em conta e modelar os seus desejos, as suas formas de fazer e de pensar, os seus hábitos, os seus temores, as suas disposições, o seu meio. É pôr em marcha um conjunto de táticas, de táticas discursivas, policiais, materiais, de atenção minuciosa às emoções populares, às suas oscilações misteriosas; é agir a partir de uma sensibilidade permanente à conjuntura afetiva e política, de modo a prevenir o motim e a sedição. Agir sobre o meio e modificar continuamente as suas variáveis, agir sobre uns para influenciar a conduta dos outros, garantido o domínio sobre o rebanho. É em suma manter uma guerra – que nunca terá tal nome nem aparência – em praticamente todos os planos onde se movimenta a existência humana. Uma guerra de influência, subtil, psicológica, indireta. Não foi o poder de Estado que se fortaleceu sem cessar a partir do século XVII no Ocidente, mas sim, atravessando a edificação dos Estados nacionais, como presentemente a sua ruína, o governo enquanto forma de poder específica. Se hoje as velhas superestruturas enferrujadas dos Estados-nação podem afundar sem receios é, justamente, porque elas devem dar lugar a essa famosa “governança”, flexível, plástica, informal, taoista, que se impõe em todos os domínios, seja na gestão de si próprio, das relações, das cidades ou das empresas. Nós, revolucionários, não podemos evitar o sentimento de que perdemos todas as batalhas, uma após outra; porque elas se dão num plano para o qual ainda não encontrámos passagem, porque reunimos as nossas forças em torno de posições já perdidas, porque os ataques são desencadeados em lugares onde não nos defendemos. Isto provém, em larga medida, do facto de ainda concebermos o poder na forma 54 de Estado, de Lei, de Disciplina, de Soberania, quando é enquanto governo que ele não pára de avançar. Procuramos o poder no estado sólido quando ele há muito tempo passou para o estado líquido, se não mesmo gasoso. Em desespero de causa, acabamos a suspeitar de tudo o que ainda apresenta uma forma precisa – hábitos, fidelidades, enraizamento, mestria ou lógica – quando o poder se manifesta muito mais na incessante dissolução de todas as formas. As eleições não têm nada de particularmente democrático: os reis foram durante muito tempo eleitos e raros são os autocratas que dispensam um pequeno prazer plebiscitário de quando em quando. Elas são-no na medida em que permitem assegurar, não certamente uma participação das pessoas no governo, mas uma determinada adesão a este, por via da ilusão de o ter escolhido um bocadinho. “A democracia é a verdade de todas as formas de Estado”, escrevia Marx. Estava enganado. A democracia é a verdade de todas as formas de governo. A identidade do governante e do governado é o ponto crítico onde o rebanho se torna pastor coletivo e onde o pastor se dissolve no seu rebanho, onde a liberdade coincide com a obediência, a população com o soberano. A reabsorção do governante e do governado, um no ou- tro, é o governo no estado puro, sem mais forma nem limite. Não é por acaso que se esteja agora a teorizar a democracia líquida. Pois que toda a forma fixa é um obstáculo ao exercício do puro governo. No grande movimento de fluidificação geral não há muros de sustentação, apenas rolamentos sobre uma assimptota. Quanto mais fluido, mais governável; e quanto mais governável, mais democrático. O single metropolitano é evidentemente mais democrático do que o par casado, que por sua vez é mais democrático do que o clã familiar, que por sua vez é mais democrático do que o bairro mafioso. 55 Aqueles que acreditaram que as formas do Direito eram uma conquista definitiva da democracia, e não uma forma pro- visória em vias de superação, estão agora por sua conta. Elas são agora um obstáculo formal à eliminação dos “inimigos combatentes” da democracia, assim como à reorganização contínua da economia. Da Itália dos anos 1970 às dirty wars de Obama, o antiterrorismo não é uma lamentável entorse nos nossos belos princípios democráticos, uma exceção à sua margem, ele é bem mais o ato constituinte permanente das democracias contemporâneas. Os Estados Unidos erguem uma lista dos “terroristas” de todo o mundo com uns inesgotáveis 680.000 nomes e nutrem um corpo de 25.000 homens, os JSOC, encarregues na maior opa- cidade de matar não importa quem, não importa quando e não importa onde sobre a superfície do globo. Com a sua frota de drones não muito cuidadosos com a identidade exata daqueles que estraçalham, as execuções extrajudiciais vieram substituir os processos extrajudiciais do tipo Guantánamo. Os que se escandalizam pura e simplesmente não compreendem o que significa governar democraticamente. Ficaram na fase precedente, aquela em que o Estado moderno ainda falava a linguagem da Lei. No Brasil, são detidos sob leis antiterroristas alguns jovens cujo crime é terem querido organizar uma manifestação contra o Mundial de futebol. Em Itália, quatro camaradas são presos por “terrorismo” pelo facto de um ataque ao estaleiro do TAV, reivindicado pelo movimento no seu conjunto, ter supostamente, ao queimar um compressor, afetado gravemente a “imagem” do país. É inútil multiplicar os exemplos, o gesto é universal: tudo o que resiste aos esquemas dos governos está em vias de ser trata- do como “terrorista”. Uma mente liberal poderia temer que os governos estivessem em vias de ferir a sua legitimidade democrática. Nada disso: ao ferirem-na, eles refundam-na. Pelo menos se a operação for bem-sucedida, se as almas foram bem sondadas e o 56 terreno das sensibilidades preparado. Porque quando Ben Ali ou Mubarak denunciam as multidões que saem à rua como bandos de terroristas e isso não cola, a operação de refundação vira-se então contra eles; o seu fracasso liquefaz o chão da legitimidade sob os seus pés; eles dão por si a pedalar sobre o vazio, à vista de todos; a sua queda é iminente. A operação só se revela verdadeiramente no momento em que encalha.

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Teoria da destituição

Partindo da Argentina, a palavra de ordem “que se vayan todos!” fez verdadeiramente tremer as cabeças dirigentes do mundo inteiro. Perdemos a conta ao número de línguas nas quais gritámos o nosso desejo de destituir o poder instalado ao longo dos últimos anos. O mais surpreendente é que o tenhamos, em muito casos, conseguido. Porém, seja qual for a debilidade dos novos regimes que emergiram dessas “revoluções”, a segunda parte do slogan, “y que no quede ni uno!”, permaneceu letra morta: novos fantoches tomaram o lugar deixado vago. O caso mais exem- plar é certamente o do Egipto. Tahrir teve a cabeça de Mubarak e o movimento Tamarut teve a de Morsi. A rua exigiu, de cada vez, uma destituição que não tinha força para organizar, de tal modo que são as forças previamente organizadas, a Irmandade Muçulmana e depois o exército, que usurpam essa destituição, cumprindo-a em seu proveito. Um movimento que exige está sempre por baixo de uma força que age. Admiremos de passagem como o papel de soberano e o de “terrorista” são no fundo intercambiáveis, como se passa depressa dos palácios do poder para os subsolos das suas prisões, e inversamente. 57 A queixa que geralmente se levanta entre os insurretos de ontem diz: “A revolução foi traída. Nós não morremos para que um governo provisório organize eleições e depois uma assembleia constituinte prepare uma nova constituição, que dirá as modalidades de novas eleições de onde sairá um novo regime, ele mesmo quase idêntico ao anterior. Nós queremos que a vida mude e nada mudou, ou muito pouco.” Os radicais têm sobre este aspeto a sua explicação de sempre: a de que o povo deve governar-se a si próprio em vez de eleger representantes. Se as revoluções são sistematicamente traídas talvez seja isso obra da fatalidade; mas talvez seja o sinal de que há na nossa ideia de revolução alguns vícios escondidos que a condenam a tal destino. Um desses vícios reside no facto de ainda pensarmos muito frequentemente a revolução como uma dialética entre o constituinte e o constituído. Ainda acreditamos na fábula de que todo o poder constituído se enraíza num poder constituinte, de que o Estado emana da nação, como o monarca absoluto de Deus, de que existe permanentemente sob a constituição em vigor uma outra constituição, uma ordem ao mesmo tempo subjacente e transcendente, quase sempre muda, mas que pode surgir a qualquer instante tal como um relâmpago. Queremos acreditar que basta que “o povo” se junte, se possível frente ao parlamento, e grite “vocês não nos representam!” para que pela sua simples epifania o poder constituinte expulse magicamente os poderes constituídos. Esta ficção do poder constituinte serve apenas, na verdade, para mascarar a origem propriamente política, fortuita, o golpe de força pelo qual todo o poder se institui. Aqueles que tomam o poder retroprojetam sobre a totalidade social que doravante controlam a origem da sua autoridade e, dessa for- ma, fazem-na legitimamente calar em seu próprio nome. Assim se realiza, a intervalos regulares, a façanha de disparar sobre o povo em nome do povo. O poder constituinte é o traje de toureiro 58 de que se reveste a origem sempre sórdida do poder, é o véu que hipnotiza e faz com que todos acreditem que o poder constituído é muito mais do que realmente é. Aqueles que, como Antonio Negri, se propõem a “governar a revolução” não vêem senão, em todo o lado, dos motins de subúrbio às sublevações do mundo árabe, “lutas constituintes”. Um negrista madrileno, partidário de um hipotético “processo constituinte” saído do movimento das praças, ousa mesmo apelar à criação do “partido da democracia”, “o partido dos 99%”, com vista a “articular uma nova constituição democrática tão ‘in- significante’, tão a-representativa, tão pós-ideológica como foi o 15M”. Este género de dislates incita-nos mais que tudo a repensar a ideia de revolução como pura destituição. Instituir ou constituir um poder é dotá-lo de uma base, de um fundamento, de uma legitimidade. Para um aparelho econó- mico, jurídico ou policial, trata-se de ancorar a sua frágil existência num plano que o suplante, numa transcendência que o coloque fora de alcance. Por via desta operação, aquilo que não é mais do que uma entidade localizada, determinada, parcial, ascende a um alhures de onde, seguidamente, pode pretender tudo abarcar; é enquanto constituído que um poder se torna ordem sem exterior, existência sem presença, e que não pode outra coisa que não submeter ou aniquilar. A dialética do constituinte e do constituído vem fornecer um sentido superior ao que é tão-só uma forma política contingente: é assim que a República se torna o estandarte universal de uma natureza humana indiscutível e eterna, ou o califado o único lar da comunidade. O poder constituinte dá nome a esse sortilégio monstruoso que faz do Estado aquele que nunca se engana, ao fundar-se como razão; aquele que não tem inimigos, pois opor-se a ele é ser criminoso; aquele que tudo pode fazer, desonradamente. 59 Para destituir o poder não basta portanto vencê-lo na rua, desmantelar os seus aparelhos, incendiar os seus símbolos. Destituir o poder é privá-lo do seu fundamento. É isso que fazem justamente as insurreições. Aí, o constituído surge tal como é, nas suas mil manobras desajeitadas ou eficazes, grosseiras ou sofisticadas. “O rei vai nu” diz-se então, porque o véu constituinte está em farrapos e toda a gente pode ver através dele. Destituir o poder é privá-lo de legitimidade, é conduzi-lo a assumir a sua arbitrariedade, a revelar a sua dimensão contingente. É mostrar que ele não detém mais do que a própria situação, sobre a qual desdobra estratagemas, procedimentos, combinações – despoletar uma configuração passageira das coisas que, como tantas outras, apenas a luta e a astúcia farão sobreviver. É forçar o governo a descer ao nível dos insurretos, que não mais serão “monstros”, “criminosos” ou “terroristas”, mas muito simplesmente inimigos. Encurralar a polícia reduzindo-a a um mero gang, a justiça a uma associação de malfeitores. Na insurreição, o poder vigente é uma força mais entre outras sobre um plano de luta comum, e não mais essa metaforça que rege, ordena ou condena todas as potências. Todos os canalhas têm um endereço. Destituir o poder é mandá-lo por terra. Qualquer que seja o resultado da confrontação na rua, a insurreição já logrou enfraquecer o tecido bem apertado das crenças que permitem ao governo o seu exercício. É por isso que aqueles que convergem apressadamente no enterro da insurreição não perdem tempo a tentar remendar os fundamentos esmigalhados de uma legitimidade agora caducada. Eles procuram, pelo contrário, insuflar no próprio movimento a pretensão a uma nova legitimidade, isto é, uma nova pretensão a fundar-se como razão, a sobressair do plano estratégico onde as diferentes forças se enfrentam. A legitimidade “do povo”, “dos oprimidos” ou “dos 99%” é o cavalo de Troia que permite ao constituinte inscrever-se 60 na destituição insurrecional. É o método mais seguro para desfazer uma insurreição – que dispensa mesmo uma vitória na rua. Para tornar irreversível a destituição é portanto necessário começar por renunciar à nossa própria legitimidade. Temos de abandonar a ideia de que se faz a revolução em nome de algo, que haverá uma entidade, essencialmente justa e inocente, que incumbiria às forças revolucionárias representar. Não se manda o poder por terra para se elevar a si próprio aos céus. Destituir a forma específica do poder desta época requer, para começar, que se reenvie ao seu lugar de hipótese a “evidência” que estabelece que os homens têm que ser governados, seja democraticamente por si próprios seja hierarquicamente por outros. Este pressuposto remonta pelo menos ao nascimento grego da política – a sua força é tal que os próprios zapatistas reuniram as suas “comunas autónomas” nos “conselhos de bom governo”. Ele apoia-se sobre uma antropologia situável, que se pode encontrar tanto no anarquista individualista que aspira à plena satisfação das suas paixões e necessidades próprias, como nas conceções aparentemente mais pessimistas que vêem no homem uma besta ávida que só um poder implacável pode impedir de de- vorar o próximo. Maquiavel, para quem os homens são “ingratos, inconstantes, falsos e mentirosos, frouxos e cúpidos” está, neste aspeto, de acordo com os fundadores da democracia norte-americana: “quando se edifica um governo, deve-se partir do princípio que todo o homem é um intrujo”, como postulava Hamilton. Em todos os casos parte-se da ideia de que a ordem política tem por vocação conter uma natureza humana mais ou menos animalesca, onde o Eu enfrenta os outros e o mundo, onde corpos irremediavelmente separados são mantidos juntos através de um qualquer artifício. Como demonstrou Marshall Sahlins, esta ideia de uma natureza humana que caberia à “cultura” conter é uma ilusão ocidental. Ela exprime a nossa miséria, e não a de 61 todos os terranos. “Para a maior parte da humanidade, o egoísmo que tão bem conhecemos não é natural no sentido normativo do termo: ele é considerado como uma forma de loucura ou de feitiço, como motivo de ostracização, de condenação à morte ou, no mínimo, como sinal de um mal que há que barrar. A cupidez exprime menos uma natureza humana pré-social do que uma anomalia da humanidade.” Mas para destituir o governo, não basta criticar esta an- tropologia e o seu suposto “realismo”. É necessário que a con- sigamos apanhar a partir de fora, e aí afirmar um outro plano de perceção. Porque efetivamente nos movemos num outro plano. A partir do exterior relativo em que vivemos, que tentamos construir, chegámos a esta convicção: a questão do governo só se põe a partir de um vazio, a partir de um vazio que ele necessitou frequentemente de produzir. É necessário que o poder esteja suficientemente desligado do mundo, que tenha produzido um vazio suficiente em torno do indivíduo e nele próprio, que tenha produzido um espaço entre os seres bastante desértico, para que possa, a partir daí, interrogar-se sobre como agenciar todos estes elementos discordantes desligados entre si, como reunir o separado enquanto separado. O poder cria o vazio. O vazio invoca o poder. Sair do paradigma do governo é partir em política da hipótese inversa. Não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e de tecedura de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele atravessanos. O que nós habitamos habita-nos. O que nos cerca constitui-nos. Nós não nos pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos. A questão não é dar forma ao vazio de onde por fim se retornaria a agarrar tudo 62 aquilo que nos escapa, mas de aprender a melhor habitar este que aqui está, o que implica chegar a entendê-lo – e isto nada tem de evidente para os filhos míopes da democracia. Entrever um mundo povoado não de coisas mas de forças, não de sujeitos mas de potências, não de corpos mas de ligações.

É pela sua plenitude que as formas de vida realizam a destituição.

Aqui, a subtração é afirmação e a afirmação faz parte do ataque.

INVISÍVEL, Comitê. Querem obrigar-nos a governar, não vamos cair nessa provocação. In: Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições (2016). p. 33-64

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