A MILITÂNCIA É MODO DE VIDA QUANDO (REAÇÃO MORIBUNDA)A VONTADE MODERNA ESTÁ EM OCASO. MORTE DO HOMEM. ESGOTAMENTO. MODO DE SUBJETIVAÇÃO REATIVA, ACUADA [A VONTADE DO EU, NÃO É DEUS. TENTATIVA DE RECOMPOR OS CACOS]

ABAIXO O MATERIAL DO TEXTO: FIGUEIREDO, Luís Cláudio. A militância como modo de vida. Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, v. 1, n. 2, p. 205-216, 1993. HÁ DESTAQUES EM SUBTÍTULOS, UM QUESTIONAMENTO E UMA LIGAÇÃO POSSÍVEL COM O ESGOTAMENTO CONTEMPORÂNEO.

FORÇAS EM JOGO  NA MILITÂNCIA MODERNA (SÉC. XIX-XX).

A militância emerge em certo campo de produção entre o romantismo, liberalismo e a sociedade disciplinar.Este território existencial que emergiu no séc. XIX, apesar de remanejamentos e deslizamentos ainda permanece com traços coexistindo, em justaposição e cruzamento com novos modos de vida. As linhas de força que produzem a militância são, para L.C. F, marcadamente as do liberalismo, romantismo e da sociedade disciplinar. Certo liberalismo nos habita e habilita a partir do séc. XIX promovendo modos de viver, processos de subjetivação que produzem o chamado sujeito autocontido, autodelimitado, autocontrolado, autoconhecido, autosubsistente, cindido entre uma esfera de liberdades privadas e uma esfera de obediência pública às leis. Em parcial contraposição e justaposição, há as linhas de força do romantismo produzindo modos de subjetivação atravessados por forças suprapessoais da natureza e da história, forças que, contudo, se fazem ouvir ‘de dentro’ e em oposição às conveniências e convenções públicas; forças que, enfim, engendram, simultaneamente, um processo endógeno de desenvolvimento, com a constituição do culto ao “absolutamente espontâneo” e singular. E deseja em nós uma condição suprapessoal, uma comunhão perfeita entre sujeitos plenamente desenvolvidos; ambos os aspectos deste processo colocam em risco os limites estreitos da subjetividade liberal. Há finalmente as linhas de força que operam na sociedade disciplinar, as novas práticas de exercício de poder correlacionadas a concepções e modos bem determinados de subjetivação: de um lado, as que incidem minuciosamente, produzindo o sujeito no sentido forte, individualizando-o, separando-o e tomando-o disponível no exame e para o controle e organizando, a partir da constituição de  indivíduos, assim identificados, os corpos coletivos; tudo realizado de acordo com um projeto de rigorosa racionalidade administrativa. De outro lado, as práticas de manipulação, inflação de sentimentos e emoções que evocam nostalgias, despertam temores, promovem entusiasmos e alimentam esperanças, exercendo-se diretamente sobre as grandes massas mentecaptase emudecidas. Este pólo de dupla face foi então designado como o das disciplinas.

PLANO DE CONSTITUIÇÃO DA MILITÂNCIA E RELAÇÕES SUBTERRÂNEAS, DE DESCONHECIMENTO.

Para L.C.F. o que faz com que estas forças/pólos se convertam em vértices de um triângulo é o fato de manterem entre si relações de mútuo apoio (em geral, dois se aliando para dar combate ao terceiro): as práticas disciplinares articulam-se com os outros dois vértices e estes, um com o outro. Ocorre, porém, que estas relações permanecem omais das vezes subterrâneas ao mesmo tempo que se mostram à luz do dia os, também eles efetivos, antagonismos entre as disciplinas, o liberalismo e o romantismo. Nesta medida, o espaço triangular é um espaço de desconhecimento que se mantém pela denegação dos vínculos positivos que unem os três vértices na configuração de um mesmo terreno.

MILITÂNCIA E OUTROS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO REATIVA NA MODERNIDADE.

Em outro lugar L.C.F examinou uma modalidade de recusa a participar do mundo assim configurado; trata-se da tentativa de escapar ao abraço das alianças espúrias que emergiu com toda a força no final do século XIX: a excentricidade esteticista. Ora o que penso ter mostrado naquele texto é que a ruptura esteticista com o cotidiano, a procura estilizada da posição excêntrica, resulta na repetição estéril do próprio espaço triangular mediante a elaboração de uma identidade essencialmente resistente, consagrada à mesmice e à própria conservação. Vimos também que uma identidade assim elaborada pressupõe uma cerrada rede de exclusões, negações, vedação e defesas que têm como conseqüência a segregação de um fundo inominável de forças que parecem pressionar ‘de fora’ e ameaçam permanentemente a subsistência e a coesão do idêntico. O fracasso da excentricidade esteticista em fazer frente a estas forças que a invadem, e que se originam no mesmo espaço de onde o excêntrico procura se evadir e de onde extrai os elementos de sua própria fabricação, forças que lhe parecem desagregadoras, redunda na franca manifestação do ‘psicológico’. Daí resultam também as indmeras tentativas de lidar com este ‘psicológico’. incorporando-o ao campo das experiências nomináveis e significativas; trata-se aqui da criação das diversas práticas e discursos das psicologias contemporâneas às quais o excêntrico fracassado deve se entregar.

Não se deve pensar, contudo, que a dominância do olhar e do jargão da psicologia seja a conseqüência inevitável do fracasso do homem de estilo, por mais exemplar que seja este fracasso. Sempre resta, pelo menos para os que têm um pé na periferia do Ocidente, o refúgio nas míticas “serras”, para onde se transfere Jacinto de Tormes quando lhe invade a náusea do esteticismo parisiense. Refiro-me aqui ao As cidades e as serras, de Eça de Queiroz, no qual se conta a história de um civilizadíssimo português, aclimatado à Paris fin-de-siècle, que se enfastia com a vacuidade do esteticismo e reencontra o ânimo na autêntica rusticidade de uma província lusitana. Mesmo para os que não são portugueses nem personagens da velhice de Eça de Queiroz, mesmo para os que não têm para onde se retirar, restam outros modos de subjetivação reativa.

MILITANTE, IDENTIDADE RESISTENTE, EXPRESSÃO MAIS DEPURADA DA MODERNIDADE SEM DEUS.

O presente trabalho tem como objetivo examinar outra modalidade de identidade resistente, um outto estilo de contraposição às tensões e conflitos do espaço triangular. Nesta modalidade, ao contrário do que ocorre na excentricidade esteticista, enfatiza-se o compromisso e o engajamento. No entanto, como veremos, trata-se de um processo identificatório igualmente calcado em procedimentos de exclusão e vedamento e que também resulta na repetição estéril do próprio terreno que pretendia transformar. Talvez possamos dizer que, mais ainda que o esteta excêntrico, o militante seja a reprodução mais depurada do mundo moderno (séc. XIX), excluindo-se, porém, o que neste mundo já poderia apontar para a abertura de novos espaços. Em outras palavras, estou sugerindo que, independentemente da região – vida política, religiosa, acadêmica etc. – e independentemente da direção – revolucionária’, ‘conservadora’ ou alternativa’ – em que se exerça a militância, ela será sempre da ordem do sintoma. Antes de prosseguirmos, alguns esclarecimentos se fazem necessários. Primeiro, ao falar de militância não se estará focalizando exclusivamente a mi- litância política, mas tomando em consideração a militância como modo de vida, tal como pode se manifestar nos mais variados campos de experiência. Na verdade, como será argumentado adiante, a militância, mesmo quando exercida no contexto das lutas pelo poder, éexatamente o oposto do que poderíamos conceber como uma autêntica participação política.

[Um questionamento à frase de L.C.F: “a militância é exatamente o oposto do que poderíamos conceber como uma autêntica participação política.” A noção de autenticidade (da autêntica participação política) é romântica, e, a militância é uma das inflexões da/na política, um funcionamento político (não o seu oposto), tudo é politico todo o tempo]

 Isto significa que a crítica à militância não coincide com a crítica à participação política propriamente dita. Finalmente ao caracterizar o modo de vida militante como ‘sintoma’ estou adotando como plataforma crítica uma concepção da modernidade e do modo de subjetivação nela dominante, segundo a qual o militante constitui uma versão extremada desta subjetividade; nesta medida, a militância figura como sintoma de toda uma época e de todo o sofrimento que lhe é inerente.

MILITÂNCIA ANTES DA MODERNIDADE E A TRADIÇÃO MARXISTA-LENINISTA MODERNA

Não se podem esquecer as diversas figuras de militantes que a civilização occidental conheceu, e, em particular, a do militante cristão na sua versão jesuíta. Em outro trabalho tive a oportunidade de apresentar o jesuitismo como a mais completa e bem definida forma de construção da subjetividade moderna, ainda na aurora da modernidade (Figueiredo, 1992; cap. 1). Não obstante isso e apesar de, na continuação eu vir a mostrar que o espírito  militante atravessou toda a idade moderna, sendo mesmo um de seus resumos mais expressivos, creio que foi o século XX que assistiu ao pleno desdobramento desta figura. Neste nosso século a militância transformou-se num dos modos dominantes de existência e sua instalação alcançou uma escala planetária. Não confinou-se, igualmente, a uma esfera de atividades: há militância na política, na religião, nos negócios, nas atividades científicas e culturais em geral, incluindo, privilegiadamente, o campo da contracultura. É a militância como modo de vida. No entanto, em que pese esta variada implantação, penso que o tipo perfeito de militante foi aquele gerado pelos partidos ditos de esquerda e, mais particularmente, na tradição marxista-leninista. O exame desta militância nos será ainda mais elucidativo porque, além de concentrar paradigmaticamente os traços essenciais desta modalidade de subjetivação, ela exibe, de forma patética, a contradição entre as pretensões revolucionárias e transformadoras e a elaboração de identidades resistentes, reativas, defensivas e obturadas. Escrevo um dia após a bandeira do Partido Comunista haver descido definitivamente do mastro do Kremlin; poderia parecer que a militância já faz parte da história. Muito ao contrário; ela está tão presente como antes e o risco ainda existe de nela recairmos no justo momento em que procuramos dela nos afastar…

Mas afinal, o que é militância como modo de vida?

A IDENTIDADE MILITANTE E DOIS ENQUADRES DE TEMPO.

A identidade militante assenta-se, sustenta-se e garante-se em dois enquadres temporais: o do tempo longo dos princípios e ideais e o do tempo curto das urgências.

TEMPO LONGO. O tempo longo ferece a esta identidade a resistência indestrutível do que não é deste mundo, do que se conserva inalcançável no plano da transcendência, do que se apresenta como necessário e indiscutível, enfrentando, ou melhor ainda, sem precisar enfrentar as vicissitudes do tempo. A identidade revolucionária, neste plano, não se define a partir de uma revolução efetivamente realizada; define-se apenas pela adesão ou imersão imaginária no movimento que remeteria inexoravelmente a este tempo longo com suas metas e princípios fixados de uma vez por todas.

O TEMPO CURTO. O tempo curto da militância oferece a esta identidade a resistência de um cotidiano obturado pelas tarefas inadiáveis, pela disponibilidade ilimitada para a ação, pela diligência incessante. Novamente aqui a identidade revolucionária não se define por resultados, mas a partir da estrita observância de um programa de ação repetitivo e estenuante. Assim como os princípios e ideais são man- tidos a salvo da usura do tempo, também a rotina é preservada e mantida com quase total independência das condições de sua efetuação. Embora isso possa não se revelar a uma visão apressada, também a rotina da militância, com toda a sua mesquinha materialidade, existe num plano de transcendência em que os seres parecem repousar sossegados no meio da agitação às vezes frenética dos cálculos estratégicos, das reuniões e das operações.

CLANDESTINIDADE E CORTE COM A TEMPORALIDADE MUNDANA

Em nenhuma outra condição a militância se revela mais do que na clandestinidade. O agrupamento de militantes clandestinos realiza a condição paradisíaca de um corte radical com a temporalidade mundana, sujeita a todos os contratempos oriundos, entre outras coisas, da sempre precária articulação do curto com o longo prazo (o tempo real é o tempo dos contratempos…). No agrupamento de militantes clandestinos vigoram na mais total autonomia e desconexão o tempo curto das tarefas e o tempo longo dos princípios e ideais sem que jamais a preocupação com as mediações e passagens possa vir a descongelar estes poderosos dispositvos.

A clandestinidade é o império do mesmo. Não apenas por causa de sua – falsa – temporalidade, mas, é ainda mais óbvio, no plano da intersubjetividade. O agrupamento clandestino leva às intimas conseqüências a exclusão do outro: tanto do outro ‘inimigo histórico’, como de todos os pequeninos outros que diferem por pouco que seja na compreensão das tarefas ‘verdadeiramete revolucionárias’. O agrupamento revolucionário clandestino é a concretização mais apurada do espfrito de seita. A exclusão de todas as formas de alteridade alia- se, então, ao congelamento do tempo e à exorcização das surpresas para converter a existência clandestina num abrigo eficaz; ao contrário do que pode parecer para quem olha a questão pelo viés policial, a clandestinidade é um reduto de segurança, é o grande dique a proteger as ficções que sustentam esta identidade contra as marés do tempo e as marolas do outro.

Este parece ser o momento de retomar a uma afirmação anterior em que se diz que a militância é sempre o oposto do que seria uma autêntica participação política.

[ Continua o questionamento: Ainda assim é uma afirmação opositivia e romântica, mesmo em nome das diferenciações no politico etc.]

Se entendermos o político como o campo comum e público de encontro das alteridades, que neste encontro se constituem nas e pelas suas diferenças gerando um processo permanente de diferenciações e mudanças, deve ficar muito clara a incompatibilidade entre política e militância quando esta se converte em modo de vida.

2.

TRÊS EIXOS DOS DISCURSO DE AUTOLEGITIMAÇÃO DA MILITÂNCIA.

1. ‘ação desalienada’ (senhor da vontade, traços de senhor de si, liberal)

2. ‘movimento inexorável da história’ (verdadeiro sujeito, veículo de impulsos sociais, transindividuais. Traços do romantismo)

3. ‘serviço prestado à causa’. (verdadeiro sujeito, obediente à causa e/ ou ao partido. Disciplina)

Vejamos agora o que do espaço triangular da modernidade/ contemporaneidade está em jogo na militância. Os discursos de autolegitimação da militância revolucionária poderão nos servir de guia. Via de regra. eles transitam sobre três eixos: o eixo da ‘ação desalienada’, o eixo do ‘movimento inexorável da história’ e o eixo do ‘serviço prestado à causa’. Vejamos o que cada um nos reserva.
 O eixo da ‘ação desalienada’ reivindica para o militante a condição de verdadeiro sujeito por ter-se libertado dos constrangimentos sociais para se assumir como como senhor de sua própria vontade e artífice da própria vida. Não é difícil reconhecer aqui os vestígios de uma subjetividade concebida, à moda liberal, como coincidência consigo mesma.

O eixo do ‘movimento da história’ reivindica para o militante a condição de ‘verdadeiro sujeito’ por ter-se transformado em veículo de impulsos sociais que seguem seu próprio rumo e no seu próprio ritmo, carregando consigo, com a força de uma vontade necessária e impositiva, os que se dispõem a ouvi-los e a fazê-los seus. Como assinalou Gramsci, este discurso vem a calhar nos momentos em que um fosso intransponível parece interpor-se entre o reino das metas fabulosas e o das rotinas cotidianas. Aqui não é difícil localizar elementos das concepções românticas da subjetividade.

Finalmente, o eixo do ‘serviço prestado’ reivindica para o militante a condição de ‘verdadeiro sujeito’ por ser o intérprete e campeão abnegado de uma causa a cuja vontade ele se assujeita integralmente, incorporando-a e renunciando a qualquer direito individual. É neste contexto que se elaboram os vínculos de cega obediência ao partido e em que se fazem ouvir, como em nenhuma parte, as vozes da disciplina.

OS DESVIOS DO MILITANTE E TRÊS VÉRTICES. 1. ‘desvio voluntarista’ (liberal); 2. ‘desvio espontaneista’ (romântico); 3. figura do burocrata de aparelho/partido (disciplinar)

Coube sem dúvida ao gênio de Lenin a articulação destas peças aparentemente contraditórias na construção de um personagem quase real (o militante marxista-leninista) destinado a habitar um mundo extraordinário (o do centralismo democrático). É claro que o tipo fica sujeito a toda sorte de declinações. É possível fazê-lo pender para o vértice liberal e ver em seguida emergir um ‘desvio voluntarista’; ou fazê-lo pender para o vértice romântico e ver emergir o ‘desvio espontaneista’; finalmente, se pender para o lado disciplinar, veremos, talvez assustados, surgir a temível figura do burocrata de aparelho.

MILITÂNCIA É  RESISTÊNCIA CONTRA A DESAGREGAÇÃO.

A história não parece ter sido muito tolerante com a ficção leniniana: de voluntaristas, espontaneistas e burocratas compunham-se, de fato, os agrupamentos revolucionários (pelo menos é o que se depreende da constante troca de acusações entre eles). No plano da vida orgânica, os ‘desvios democratistas e ‘centralistas’ se alternavam ou, paradoxalmente, coexistiam nos partidos marxista-leninistas (aqui, também, me baseio no que circulava entre eles na forma de acusações mútuas). Apesar de tudo, enquanto conservou alguma credibilidade, a forma de subjetividade do militante marxista-leninista serviu de padrão da militância do século XX. Mesmo sendo uma ficção, e talvez por isso mesmo, a criação de Lenin ajudou na reprodução das alianças constitutivas do espaço triangular através desta figura que representa exemplarmente a resistência contra a desagregação.

3.

MILITÂNCIA E O PROBLEMA DA VONTADE IRRADIADORA

[Desalienar a vontade e/ou voluntariar-se? Impor a vontade e/ou interpretar vontades?]

Mesmo na ausência de legitimações tão poderosas, a militância sobrevive como modo de vida. Suas múltiplas declinações, com ênfases ou liberais ou românticas ou disciplinares, atestam o que ela tem de mais próprio: a sua inserção determinada na história contemporânea. Para além da variedade destas declinações, há, sem dúvida, um princípio que permite que reconheçamos uma posição existencial básica em todas as variantes. O que há de comum às militâncias é a questão da vontade. Desalienar a vontade e/ou voluntariar-se? Impor a vontade e/ou interpretar vontades? Variações como estas circulam em tomo da questão da subjetividade entendida como foco de irradiação de vontades. Nesta medida, poderíamos dizer que as raízes da identidade militante estão muito mais recuadas e são muito mais antigas. do que a configuração contemporânea, estendendo-se, pelo menos por toda a Idade Moderna e, quem sabe, por toda a história do Ocidente cristão, pelo menos desde santo Agostinho, em quem pela primeira vez a questão da vontade veio ocupar uma posição proeminente na interpretação da conduta humana.

Contudo, colocar a vontade na posição de princípio unificador do sujeito e como cerne da sua ‘egoidade’, diante da qual o mundo se converte em objeto de representação e domínio é próprio da Modernidade, conforme nos ensinam as agudas análises de Heidegger. A modernidade forjou para si mesma a imagem de uma cultura essencialmente teórica e epistemológica. No entanto, desde Bacon e Descartes a vinculação e subordinação do conhecimento ao interesse de domínio (estratégico e técnico) esteve bem presente. Schopenhauer, Nietzsche, Bergson e os pragmatistas, a partir de ângulos e com objetivos diversos, deram contribuições decisivas no processo de desvendamento destes subterrâneos do mundo das representações. Hoje o predomínio da técnica é evidência suficiente, a dispensar argumentos filosóficos. A esta relação de saber/poder entre homem e mundo subjaz uma concepção de sujeito como vontade, o que aliás foi perfeitamente apreciado por Hobbes, Locke, Berkeley e, num outro registro, por Kant.

A MILITÂNCIA É  MODO DE VIDA QUANDO (REAÇÃO MORIBUNDA) A VONTADE MODERNA ESTÁ EM OCASO. MORTE DO HOMEM. ESGOTAMENTO. 

No entanto, a militância é mais que apenas isso. Ela será mais bem-compreendida como sintoma de uma patologia da vontade, como a figura em negativo e negrito da impotência vivida como catásttofe. Como a ‘visita da saúde’ que parece fortalecer o moribundo o bastante apenas para que ele possa finalmente morrer, a militância se transforma num modo de vida quando já se aproxima a possibilidade de emergirem outras modalidades (pós-modernas?) de subjetivação em que a vontade perde a sua função central como princípio unificador da identidade. Espero que esteja assim bem claro que ao falar na militância como sintoma não estou me posicionando clinicamente’ diante de militantes tais ou quais, como se me arvorasse à condição de um psicopatologista intrometido. Ela, a militância, porém, é sintomática de uma época em que os modos dominantes de subjetivação constituem subjetividades incapazes de acolher as experiências de impotência senão como catastróficas ameaças de desagregação e que, para enfrentar estas ameaças, levam às derradeiras conseqüências a inflação imaginária da vontade.

De fato, todas as versões da militância podem ser apreendidas como modos de fortalecimento imaginário do sujeito mediante o fortalecimento (imaginário) da sua vontade – redimida, purificada, exaltada, reunida a outras e fermentada etc. – e, assim, da sua capacidade (imaginária) de exercer controle sobre o mundo, sobre a história, sobre os outros e sobre si mesmo, em primeiro lugar sobre seu próprio corpo e sobre os movimentos e padecimentos deste corpo.

MILITÂNCIA ASCETISMO E META.

Em qualquer esfera em que seja exercida, a militância vai sempre ligada a um pesado ascetismo e a rituais de purificação. Se o asceta mortifica deliberadamente ou se expõe suas vontades à mortificação é apenas para erigir sobre elas uma vontade ainda mais forte com a qual ele pode se identificar. Da mesma forma, o domínio voluntarioso da própria vontade é a meta básica da militância, independentemente da variedade de metas que são formuladas nas diversas áreas de atividade.

MILITÂNCIA E O ACONTECIMENTAL.

Em qualquer esfera em que seja exercida, a militância transforma a vida num jogo imaginário de estratégias que se destina a prever e calcular os acontecimentos de forma a lhes retirar qualquer propriedade efetivamente ‘aconteci- mental’. A militância é uma defesa sistemática contra o acontecimento, é um dispositivo de vedação.  “Fazer uma experiência com o que quer que seja, uma coisa, um ser hu- mano, um deus, isto quer dizer: deixá-la vir sobre nós, para que nos atinja, nos caia em cima, nos transforme e nos faça outro” (Heidegger, 1981; p.144). A vontade inflacionada e enrigecida do militante o coloca sempre a salvo desta espécie de aborrecimento.

MILITÂNCIA E MODO DE SUBJETIVAÇÃO REATIVA, ACUADA

[A VONTADE DO EU, NÃO É DEUS. TENTATIVA DE RECOMPOR OS CACOS]

Em qualquer esfera em que seja exercida, a militância concebe a ação sob o prisma da técnica, seja a técnica da propaganda revolucionária ou da insurreição armada, sejam as técnicas dialéticas, curativas, pedagógicas, artísticas etc. Esta predominância da técnica na militância expõe de forma claríssima o investimento da vontade, que se arma com todos os recursos disponíveis, para o fortalecimento reativo de uma subjetividade acuada. É essa natureza defensiva e sintomática da militância que a toma, simul- taneamente, um fenômeno característico do século XX, mas nostalgicamente orientado para os séculos anteriores nos quais a vontade podia gozar de uma posição muito mais sólida como princípio de unificação das identidades. É esta posição que fica comprometida na configuração contemporânea do espaço triangular formado pelos vértices do Liberalismo, do Romantismo e das Disciplinas, com suas mútuas atrações e seus antagonismos insuperáveis.  Tanto o Liberalismo como o Romantismo concedem à vontade um lugar especial e fundamental, apesar de a conceberem diferentemente. A ‘vontade’ liberal é uma propriedade inalienável do indivíduo livre, do homem enquanto ser racional, moral e político (a referência básica é Kant); a ‘vontade’ romântica é uma propriedade das coletividades (como a Vontade Geral de Rousseau, por exemplo) ou do Mundo (como em Schopenhauer, segundo quem o ‘eu’ se forma exatamente a partir de um autoconhecimento do sujeito como vontade, como ‘eu quero’). A bem dizer, cada uma destas concepções reduz a credibilidade das demais, no entanto, são os vínculos do Liberalismo e do Romantismo com as práticas disciplinares a partir do século XIX que mais contribuem para levantar suspeitas sobre todos os conceitos e sobre todas as supostas experiências de vontade. Talvez, tanto ou mais ainda do que a consciência reflexiva, a vontade tenha sido a principal vítima da contemporaneidade pós-moderna. Toda a segurança que o homem da modernidade julgava obter das experiências do que lhe parecia o mais próprio de si, a vontade (individual ou coletiva, refletida ou espontânea e cega) sucumbiu à suspeita ou à realidade da impotência vivida catastroficamente como trauma e ameaça de desagregação. É em reação sintomática a isso, ou seja, na ausência de qualquer elaboração que a militância busca recompor as identidades subjetivas com os cacos heterogêneos mas entrelaçados do espaço triangular.

IDENTIDADE MILITÂNTE, VONTADE, EU E PRÁTICAS E DISCURSOS DA PSICOLOGIA.

Gostaria de finalizar tecendo algumas considerações sobre as relações possíveis entre a identidade militante e as práticas e discursos das psicologias atuais. Em primeiro lugar, a militância pode ser aproximada a uma das formas de fazer psicologia: aquela que se propõe a tarefa restauradora de reconduzir o homem ao lugar que lhe fora assignado pelo humanismo moderno: o de senhor voluntarioso de si e do mundo. Por outro lado, há um antagonismo inevitável entre a militância e todas as formas que visam propiciar, melhor dizendo, deixar que se efetue o trânsito para novas modalidades de subjetivação que já não repousam em qualquer versão forte da vontade. Isto não implica naturalmente a pura exclusão da vontade, mas o deslocamento da posição central que ocupou e que foi ainda mais básica do que a da consciência reflexiva na definiçãodo ‘eu’. Não chega a ser surpreendente que as militâncias em geral e, mais particularmente, as político-partidárias, tenham sempre  resistido bravamente ao que pode haver de mortífero e dissolvente no olhar psicológico, ao mesmo tempo que se aliam com relativa facilidade às versões da prática psicológica mais comprometidas com a Modernidade; neste caso estão de um lado as ‘psicologias humanistas’ e, no outro extremo mas igualmente ‘modernos’, os behaviorismos. O que pode surpreender, e muito, é encontrar ainda a militância associada à psicanálise que provavelmente é, nas origens, um dos mais genuínos produtos da época de dissolução das ficções humanistas e um ingrediente ativo desta dissolução. Esta posição da psicanálise é o que impede, por exemplo, sua fácil assimilação ao quadro dicotômico em que se opõe motivos a causas do compor- tamento. Ricoeur (1988) analisou com precisão as implicações do pensamento psicanalítico para a problemática do voluntário e do involuntário mostrando que o “desejo enquanto energia sofrida” funciona como laço intennediário entre as causas e as razões, sem se reduzir a nenhum destes pólos, sem se identificar à ação compulsiva nem à atividade deliberada. A partir daí (mas também a partir de uma fenomenologia do corpo próprio tal como efetuada por Merleau-Ponty) pode-se conceber o que seria aquela “dieta de emagrecimento do sujeito” preconizada por Vattimo (1987; nota 10). Que uma usina de materiais frágeis e porosos possa se transfonnar em tempo de guerra numa fábrica de obuses, não é novidade. Que a psicanálise possa ter destino semelhante parece um contrasenso. Contudo, seríamos tolos se não reconhecêssemos que o espírito militante está presente desde Freud. Basta lembrar alguns rebentos notáveis desta tendência, como a formação daquele grupo secreto, por sugestão de Ferenczi, para atuar clandestinamente dentro da Sociedade de Psicanálise de forma a garantir a pureza do movimento; os membros do Conselho, Freud e alguns dos mais leais seguidores, não dispensaram nem o uso de um anel de ouro especial, no melhor estilo das sociedades esotéricas. Este e tantos outros incidentes do movimento psicanalítico apenas atestam o vigor desta ‘visita da saúde’, que, se pode ajudar o paciente a morrer, a partir de certa altura apenas prolonga o sofrimento desnecessariamente.

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