Esgotamento e Política em Deleuze e Zourabichvili por Peter Pelbart (vídeo de 5 minutos)

Esgotamento e Cansaço

Talvez um termo que revele de maneira aguda, embora enigmática, a passagem hesitante e não necessária entre catástrofe e criação, bem como a reversibilidade entre o “Nada é possível” e o “Tudo é possível” nesse contexto, seja esgotamento. Seria preciso lembrar a diferença assinalada por Deleuze entre o cansaço e o esgotamento. O cansaço faz parte da dialética do trabalho e da produção: descansa-se para se retomar a atividade. O cansaço advém quando realizamos os possíveis que nos habitavam, escolhendo, obedecendo a certos objetivos mais do que a outros, realizando certos projetos, seguindo preferências claras. Ora, inteiramente outro é o esgotamento. O esgotado é aquele que, tendo esgotado seu objeto, se esgota ele mesmo, de modo que essa dissolução do sujeito corresponde à abolição do mundo. Se o cansado tem sua ação comprometida temporariamente, prestes a retomá-la, o esgotado, em contrapartida, é pura inação, testemunho. Sua postura típica não é a do homem deitado, mas do insone sentado, cabeça entre as mãos, a testemunha amnésica (… ) O esgotado pode até combinar ou recombinar as variáveis, percorrê-las exaustivamente, e os termos disjuntos até podem subsistir, mas já não servem para nada. A permutabilidade total, mesmo quando obedece a um extremo rigor, vai de par com a evacuação do interesse – é “para nada” e é a morte do eu.

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Uma dimensão impessoal, insone, fantasmática, intensiva dos personagens ou da escrita beckettiana, sem qualquer juízo. O “eu dissolvido” percorre nosso tempo como um operador (…) Em O esgotado, Deleuze refere-se à “fantástica dissolução do eu”.

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Aparentemente esse esgotado é uma figura passiva, mas não podemos deixar de acompanhar o alcance da operação de Samuel Beckett, que ressoa com os personagens valorizados ao longo dos textos de Deleuze sobre literatura, Bartleby, ou Billy Budd, de Melville, o Idiota de Dostoiévski, o artista da fome de Kafka etc. Neles todos uma obstinação outra se manifesta, junto à sua inexprimível recusa do mundo e de sua dialética: uma afirmatividade vital incontornável, um “espinosismo obstinado” cujo alcance político resta esclarecer (…)

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O esgotado texto de Gilles Deleuze, foiescrito pouco depois da queda do Muro de  Berlim[1] (1989). Em certo sentido, com o Muro desmoronou um modo de pensar o possível no domínio político. Foi varrido o possível dado de antemão, idealmente – as utopias, as ideologias, projetos de outro mundo. Sabe-se o quanto a esquerda o deplorou, o quanto a direita se regozijou, a que ponto um certo pós-moderno surfou sobre o ceticismo tornado virtude. No entanto, não há em Deleuze sequer uma ponta de piedade ou lamentação ao descrever o personagem do esgotado. Como se o esgotamento do possível (dado de antemão) fosse a condição para alcançar outra modalidade de possível (o ainda não dado), em outros termos, não a realização eventual de um possível previamente dado, mas a criação necessáriade um possível sob um fundo de impossibilidade. O possível deixa de ficar confinado ao domínio da imaginação, ou do sonho, ou da idealidade, tornando-se coextensivo à realidade na sua produtividade própria. O possível se alarga em direção a um campo de possíveis. Como abrir um campo de possíveis? Não serão os momentos de insurreição ou de revolução precisamente aqueles que deixam entrever a fulguração de um campo de possíveis? Inverte-se assim a relação entre o acontecimento e o possível. Não é mais o possível que dá lugar ao acontecimento, mas o acontecimento que cria um possível assim como a crise não era o resultado de um processo, mas o acontecimento a partir do qual um processo podia desencadear-se. O acontecimento cria uma nova existência, produz uma nova subjetividade (novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho…). Tais momentos, sejam individuais ou coletivos (como Maio de 68), correspondem a uma mutação subjetiva e coletiva em que aquilo que antes era cotidiano se torna intolerável, e o inimaginável se torna pensável, desejável, visível. É quando surge a figura do vidente, à qual Deleuze retorna sobretudo em seus livros sobre cinema, e que Zourabichvili valoriza. O vidente enxerga em uma situação determinada algo que a excede, que o transborda, e que nada tem a ver com uma fantasia. A vidência tem por objeto a própria realidade em uma dimensão que extrapola seu contorno empírico, para nela apreender suas virtualidades, inteiramente reais porém ainda não desdobradas. O que o vidente vê, como no caso do insone de Samuel Beckett, é a imagem pura, seu fulgor e apagamento, sua ascensão e queda, a consumação. Ele enxerga a intensidade, a potência, a virtualidade. Não é o futuro, nem o sonho, nem o ideal, nem o projeto perfeito, porém as forças em vias de redesenharem o real.

O texto de Deleuze seria atravessado por essa alternativa: realizar um possível dado de antemão, ou efetuar um possível ainda não dado, isto é, atualizar um virtual, afirmar uma nova sensibilidade. Aquele que realiza um possível poderia igualmente não realizá-lo -com o que ele permaneceria num estado de mera possibilidade. Mas há em Deleuze a postulação de uma necessidade. O que nos entedia ou paralisa, lembra Zourabichvili, é justamente que hoje tudo é possível, no sentido em que as alternativas estão dadas, diante de nós como numa múltipla escolha, mas também no sentido em que tudo parece confinado ao estado de possibilidade. Com isso, o” tudo é possível” equivale ao “Nada é possível”. O autor insiste: sempre que giramos em torno da mera possibilidade, estamos no domínio da pseudo experiência, desviando-nos da efetividade e da necessidade. Portanto, trata-se de arrastar o possível para o domínio da efetuação em todos os lugares em que emerge. A conclusão é clara: é esgotando o possível que o criamos. É preciso chegar a “respirar sem oxigênio”, em proveito de uma “energia mais elementar e de um ar rarefeito (o Céu Necessidade}” perversão de Deleuze.

Desatar liames.

Já podemos retomar a questão desde um ponto de vista ampliado. O esgotamento não é um mero cansaço, nem uma renúncia do corpo e da mente, porém, mais radicalmente, é fruto de uma descrença, é operação de desgarramento, consiste num descolamento – em relação às alternativas que nos rodeiam, às possibilidades que nos são apresentadas, aos possíveis que ainda subsistem, aos clichês que mediam e amortecem nossa relação com o mundo e o tornam tolerável porém irreal e, por isso mesmo, intolerável e já não digno de crédito. O esgotamento desata aquilo que nos “liga” ao mundo, que nos “prende” a ele e aos outros, que nos “agarra” às suas palavras e imagens, que nos “conforta” no interior da ilusão de inteireza (do eu, do nós, do sentido, da liberdade, do futuro) da qual já desacreditamos há tempos, mesmo quando continuamos a eles apegados. Há nessa atitude de descolamento certa crueldade, sem dúvida, da qual os textos de Samuel Beckett não estão de modo algum desprovidos, mas essa crueldade carrega uma piedade outra. Apenas através de uma tal desaderência, despregamento, esvaziamento, bem como da impossibilidade que assim se instaura, e que Deleuze chamaria de rarefação (assim como ele reivindicava vacúolos de silêncio para que se pudesse, afinal, ter algo a dizer), advém a necessidade de outra coisa que, ainda pomposamente demais, chamamos de “criação de possível”. Não deveríamos abandonar essa fórmula aos publicitários, mas tampouco sobrecarregá-la de uma incumbência demasiadamente imperativa ou voluntariosa, repleta de “vontade”. Talvez caiba preservar, de Beckett, a dimensão trêmula que em meio a mais calculada precisão, nos seus poemas visuais, aponta para o “estado indefinido” a que são alçados os seres, e cujo correlato, mesmo nos contextos mais concretos, é a indefinição dos devires, ali onde eles atingem seu efeito de desterritorialização. Se Zourabichivli teve razão em detectar os “acordes políticos” do texto  O esgotado, é porque Deleuze ele mesmo jamais deixou de extrair tais acordes dos autores que analisou, de Melville a Kafka, de Lawrence a Ghérasim Luca. Seja na clínica, na arte ou na politica, há um circuito que vai do extenuamento do possível ao impossível, e dele à criação do possível, sem qualquer linearidade, circularidade ou determinismo. Trata-se de um jogo complexo e reversível entre o “Nada é possível” e o “Tudo é possível”.

P.P.P.


[1] 1989 foi o começo do fim do bipolarismo mundial com a queda do Muro de Berlim. A queda do Muro de certa maneira, também terminou um ciclo de 200 anos, que se iniciou com a queda da Bastilha (jul. 1789). Foi um período imantado pela ideia de revolução social, das utopias coletivas e, ao longo desses duzentos anos, de progressiva revolução no plano das aspirações individuais. Cf. Benilton Bezerra Jr.

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Zourabichvili, François. (2000). Deleuze e o Possível: sobre o involuntarismo na política. In: E. Alliez (Org). Deleuze: uma vida filosófica. (pp. 491-333). São Paulo: Editora 34.

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Gostaríamos de abordar, aqui, os aspectos políticos do pensamento de Deleuze, de maneira a um tempo provisória e restrita. Nem sempre se percebe com clareza que esquerdismo era aquele de Deleuze. A esquerda, não importa de que natureza seja, define-se geralmente pelo seu voluntarismo. Ora, Deleuze desenvolveu a filosofia menos voluntarista possível: ele reivindicava a “má vontade” do idiota à moda russa, o “nada de vontade” do original à americana1. Ele insistia sempre no caráter profundamente involuntário de todo verdadeiro pensamento, de todo devir. Nada lhe era, portanto, mais estranho do que o projeto de transformar o mundo segundo um plano ou em função de uma meta. Ele não cessava, porém, de celebrar, de espreitar, ou, na ocasião oportuna, de acompanhar o que chamava de “devires-revolucionários” .

O dualismo conservar/transformar ocupa todo o espaço da per­cepção política comum; dificilmente se concebe uma atitude política que não vise nem a conservar nem a transformar, tampouco – como no caso do reformismo – a transformar o que se conserva ou a con­servar o que se transforma, quer dizer, a adaptar. Não se pode alimentar dúvidas a propósito das organizações políticas e de suas intenções, sem que se pergunte o que “se propõe”. Deleuze sempre evitou propor o quer que fosse, embora essa abstenção tranqüila não exprimisse, a seus olhos, nenhum vazio, nenhuma carência. Em política, como em arte ou em filosofia, ele via em uma certa “decepção” a condição subjetiva propícia para algo de efetivo (um “devir”, um “processo”)2.

É claro que a esquerda não acredita mais em projetos. Tendo, no entanto, se identificado com a realização de projetos, ela não tem, ao

 

1 Cf., respectivamente, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p. 171, e Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993, p. 92.

2 Proust et les signes, Paris, PUF, 1964, p. 45; Différence et répétition, p. 258.

 

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que parece, outra escolha senão renunciar a si mesma ou tentar ainda acreditar naquilo em que não mais acredita: renegar ou negar. De forma que o voluntarismo não concerne mais, aqui, à ação, e sim à crença na ação. E sente-se um vago ressentimento em relação aos filósofos de esquerda por eles não produzirem nenhum ideal em que se possa de novo acreditar, como se eles não sondassem suficientemente o possível, por fraqueza ou sofisticação.

O último grande texto de Deleuze, publicado em 1992, intitula­se L’épuisé [O esgotado]. Não se trata de um ensaio político, pois é dedicado a Beckett. Mas é publicado menos de três anos após a queda do muro de Berlim, quando proliferam os discursos satisfeitos sobre a morte das utopias, sobre a ilusão de qualquer alternativa para a economia de mercado, e seu tema é o esgotamento do possível.

“Não há mais possível: um espinosismo obstinado.”3 Há pouca chance de que, em Deleuze, a invocação de Espinosa seja um sinal de aflição; ela não exclui, no entanto, o sarcasmo. Começamos, então, a nos tranqüilizar dizendo que isso não tem qualquer relação com a política. No entanto, Deleuze atribui ao personagem de L’épuisé a famosa fórmula de Bartleby, de Herman Melville, ao qual tinha dedicado, pouco antes, um texto de conteúdo manifestamente político4. E mais: não nos regozijamos com a extinção do possível sem um pouco de perversidade.

Procuremos escutar os acordes políticos de L’épuisé, embora o texto tenha abrangência bem diferente. A esquerda, que perde a esperança do possível, Deleuze parece dizer: muito bem que haja o esgotamento do possível; e principalmente não creiam que o esgotamento esteja apenas cansado, e que o possível persista, sob a impotência pre­sente em realizá-lo. “O esgotado é muito mais do que o cansado.”5 Mas, para a direita, de que parece estar então excessivamente próximo. Já que, por natureza, ela se regozija com a ausência de possível, ele precisa: ter esgotado o possível não é de forma alguma o que vocês pensam. O texto se abre com o desdobramento do esgotado e do cansa-

3 L’épuisé, que se segue a Quad et autres pieces pour Ia télévision, de Samuel Beckett; Paris, Minuit, 1992, p. 57.

4 Idem, p. 60: “I would prefer not to, segundo a fórmula beckettiana de Bartleby” .

5 Idem, primeira frase.

 

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do, mas, em seguida, é o enunciado “esgotar o possível” que se divide, entendendo-se o possível ou como uma alternativa ou como uma potencialidade. Multiplicar os duplos: talvez o perverso seja isso, levando­se em conta os efeitos humorísticos que disso resultam (surpresa ou decepção). A esquerda só pode recusar o enunciado; mas a direita, por sua vez, só pode retomá-lo sob a condição de não compreendê-lo (ou de compreendê-lo à sua maneira: o possível, de qualquer modo, nunca existiu). Deleuze suscita geralmente irritação nas pessoas de esquerda, pois critica o possível, a discussão livre, os direitos do homem … Mas ele alimenta, nas pessoas de direita, uma suspeita de perversidade: pelo menos esses últimos percebem algo, mesmo que negativamente.

Dois discursos aparentemente opostos coexistem em Deleuze: esgotar o possível/criar o possível. Por demais aparentes para serem reais, as contradições dos grandes filósofos são geralmente muito interessantes: elas indicam um momento de tensão extrema no pensa­mento, mais uma afirmação difícil do que uma dificuldade de afirmar.

 

  1. CRIAÇÃO DO POSSÍVEL E POSSIBILIDADE DE VIDA

Deleuze inverte a relação habitual entre o possível e o acontecimento. O possível é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente. Solicita-se a não-resignação porque a situação é cheia de possibilidades e porque ainda não se tentou tudo: aposta-se, então, em uma alternativa atual. Na esteira de Bergson, Deleuze diz o contrário: quanto ao possível, você não o tem previamente, você não o tem antes de tê-lo criado6. O que é possível é criar o possível. Passa-se, aqui, a um outro regime de possibilidade, que nada mais tem a ver com a disponibilidade atual de um projeto por realizar, ou com a acepção vulgar da palavra “utopia” (a imagem de uma nova situação pela qual se pretende, brutalmente, substituir a atual, esperando alcançar o real a partir do imaginário: operação, sobre o real, e não do próprio real). O possível chega pelo acontecimento, e não o inverso; o acontecimento político por excelência – a revolução – não é a realização de um possível, mas uma abertura do possível:

“Em fenômeno histórico, como a Revolução de 1789, a Comuna, a Revolução de 1917, há sempre uma parte de

 

6 Bergson, La pensée et le mouvant, Paris, PUF, pp. 14 e 113.

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acontecimento, irredutível aos determinismos sociais, às séries causais. Os historiadores não gostam desse aspecto: eles restauram causalidades a posteriori. Mas o próprio a­contecimento está separado ou em ruptura com as causalidades: é uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um estado instável que abre um novo campo de possíveis.”7

 

Uma revolução, naquilo que ela tem de efetivo, não é nem a conseqüência causal ou mecânica de uma situação dada, nem a realização de um projeto ou de um plano (mesmo se a referência a um plano é um dado da ação). Por abertura de um novo campo de possíveis deve-se entender que aquilo que não era realizável se torna realizável? Que tudo se revela possível ou realizável em um clima insurrecional? E que os limites usuais do possível derivam, no final das contas, de uma inibição, de uma submissão, e não de pressões reais? A idéia voluntarista segundo a qual o segredo do poder está no que­rer não pode ser atribuída a Deleuze, mesmo se duas passagens den­sas do Anti-Édipo, que serão a seguir esclarecidas, pareçam, de início, ir nesse sentido, afastando-se nitidamente do possível como instância de realização:

“O real não é impossível; no real, ao contrário, tudo é possível, tudo se torna possível. Não é o desejo que exprime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que destitui o desejo de seu ser objetivo. Os revolucionários, os artistas e os visionários se contentam em ser objetivos: eles sabem que o desejo enlaça a vida com uma potência pro­dutora, e a reproduz de modo tanto mais intenso quanto mais ele necessitar8.

A atualização de uma potencialidade revolucionária se explica menos pelo estado de causalidade pré-consciente no qual é no entanto compreendida, do que pela efetividade de um corte libidinal em um momento preciso, fenda cuja única causa é o desejo, quer dizer, a ruptura de causalidade que

 

7 “Mai 68 n’a pas eu lieu”, escrito com Félix Guattari; Les Nouvelles, 3-9 de maio de 1984.

8 L’anti-CEdipe, Paris, Minuit, 1973, p. 35.

 

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força a reescrever a história rente ao real, e produz esse momento estranhamente polívoco em que tudo é possível…”9

 

O que é um “novo campo de possíveis”? O horizonte de tudo o que pode ser imaginado, concebido, projetado, esperado em uma dada época? Segundo esse ponto de vista, uma revolução já tem o caráter de subjetiva, e torna, por ela mesma, caducos os projetos que a sustentavam, já que eles ainda pertenciam ao antigo campo de possíveis. Ou será que se trata de uma redistribuição de papéis e funções, de uma subversão do conjunto das posições sociais possíveis? Tratar-se-ia de uma mutação de uma outra ordem, afetando o próprio capitalismo. Deleuze descreve, por exemplo, a passagem de uma “sociedade disci­plinar” para uma “sociedade de controle”: assistimos à instalação de um novo regime de dominação, não à abertura de um novo campo de possíveis. Tal subversão afeta, antes, as condições históricas em função das quais um acontecimento político pode ocorrer.

Por “novo campo de possíveis” é necessário entender então uma outra coisa: a palavra possível deixou de designar a série de alternativas reais e imaginárias (ou … ou … ), o conjunto das disjunções exclusi­vas características de uma época e de uma sociedade dadas. Ela concerne, agora, à emergência dinâmica de novo. Eis a inspiração bergsoniana do pensamento político de Deleuze. Realizar um projeto não produz nada de novo no mundo, uma vez que não há diferença conceitual entre o possível como projeto e sua realização: apenas o salto para a existência. E aqueles que pretendem transformar o real à imagem do que antes conceberam não levam em conta a própria transformação. Há uma diferença de estatuto entre o possível que se realiza e o possível que se cria. O acontecimento não abre um novo campo do realizável, e o “campo dos possíveis” não se confunde com a delimitação do realizável em uma dada sociedade (mesmo se ele indica ou incita seu redimensionamento). A abertura de possível é então uma meta, sendo o problema me­nos construir o futuro do que alimentar perspectivas em relação a ele? Somos convidados a viver de esperança? “O possível, senão sufoco!”, resume Deleuze à propósito de maio de 68, retomando o grito de desesperado de Kierkegaard. A esperança pertence ainda a uma lógica

9 L’anti-CEdipe, pp. 453-4.

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de realização, e Deleuze não parece ter jamais apostado em uma esperança qualquer10. Ele via no maio de 68 a irrupção do real, e não do sonho: um momento de emergência do possível, mas certamente não como imagem daquilo que poderia ser.

O que é então o possível, ou o “possível como tal”? Deleuze afirma, de bom grado, que o que se trata de criar são novas possibilidades de vida11. Uma possibilidade de vida não é um conjunto de atos a realizar ou a escolha de tal profissão, de tal lazer, nem mesmo de tal gosto ou preferência particulares. “A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas” remete às alternativas que definem uma sociedade ou ao conjunto de modos de existência concretos possíveis a uma dada sociedade12. Mas, de maneira mais profunda, uma possibilidade de vida exprime um modo de existência: é o “expresso” de um agenciamento concreto de vida. O expresso, em Deleuze, nunca é da ordem de uma significação ou de um conjunto de significações. Ele consiste em uma avaliação: não somente a avaliação das possibilidades de vida, quando se chega a apreendê-las como tais; mas a própria possibilidade de vida como avaliação, maneira singular de avaliar ou de separar o bom e o mau, distribuição dos afetos. Uma possibilidade de vida é sempre uma diferença13.

A invenção de novas possibilidades de vida supõe, portanto, uma nova maneira de ser afetado. Deleuze insistia no conceito de “aptidão para afetar e ser afetado”, em Espinosa: nele via, assim como na “von-

 

10 Talvez coubesse distinguir esperança [espoir] e expectativa [espérance]. Jacques Ranciere evoca, neste mesmo colóquio, o messianismo desesperado que habita as últimas páginas do texto sobre Bartleby. De um modo mais geral, a filo­sofia da imanência implica uma expectativa [espérance], em sua própria cláusula: “Não se pode saber previamente” (cf., por exemplo, Difference et répétition, p. 187, Mille plateaux, Paris, Minuit, 1980, pp. 306-7; Péricles et Verdi, pp. 14-5).

11 Cf., por exemplo, Nietzsche et la philosophie, Paris, PUF, 1962, p. 115; Critique et clinique, p. 15.

12 Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991, pp. 72 e 103.

13 Notar-se-á, a esse propósito, que “possibilidade de vida” e “mundo possível” são conceitos quase sinônimos em Deleuze: ambos são da ordem do ex­presso, ambos são definidos como diferença (por exemplo, em Proust et les sig­nes, Combray como diferença, ou o lado de Méseglise ou o de Guermantes co­mo exprimindo possibilidades de vida heterogêneas, distribuiçôes afetivas he­terogêneas) .

 

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tade de potência” concebida por Nietzsche como um pathos, o instrumento de uma tipologia dos modos de existência imanentes, das maneiras concretas de viver e de pensar. Em ambos os casos, o possível remete à potência. Pode parecer paradoxal invocar Espinosa a propósito do possível; além disso, o parentesco etimológico não basta para identificar potência e possível, não mais, aliás, do que o caráter plural, diferenciável, do conceito de potência… Mas contentemo-nos, por ora, em definir o conceito de possibilidade de vida: uma distribuição diferencial dos afetos (atraente/repulsivo etc).

Essas mutações afetivas levam a uma nova distribuição entre o bom e o mau, o deleitável e o insuportável, ora em uma “mesma” pessoa (que, a partir de então, mal pode identificar o passado que viveu como seu passado), ora em uma coletividade. O capítulo “Políticas”, dos Diálogos, começa com a evocação desse tipo de mutação, segundo um célebre conto de Fitzgeralcf. Para além dos “cortes” (tor­nar-se célebre, arruinar-se, ficar velho etc.), existem mutações de um outro tipo – “fissuras”:

“A fissura se faz nessa nova linha, secreta, impercep­tível, marcando um limiar de diminuição de resistência, ou a elevação de um nível de exigência; já não se suporta o que se suportava antes, ontem, ainda; a distribuição dos desejos mudou e nós, nossas relações de velocidade e de lentidão se modificaram, um novo tipo de angústia nos atinge, mas, igualmente, uma nova serenidade … “14

 

Um acontecimento político é do mesmo tipo: uma nova distribuição dos afetos, uma nova circunscrição do intolerável. Tal tipo de mutação subjetiva não se decreta, e a questão não é, de início, desejá­la ou não: o pró ou o contra só intervêm no estágio da resposta ou da reação, conforme se escolha assumir as conseqüências ou fingir que nada aconteceu. Tal era, para Deleuze, o fundo vivo da clivagem esquerda/direita, que não se encarna de maneira alguma nas organizações existentes.

 

14 Dialogues, Paris, Flammarion, 1977, pp. 153-4.

 

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2.ENCONTRO E POTENCIALIDADES

 

A política é, então, antes de mais nada uma questão de percepção:

“Maio de 68 é, antes, da ordem de um acontecimento puro, livre de toda causalidade normal ou normativa … Houve muita agitação, gesticulações, palavras, bobagens, ilusões, em 68, mas não é isso que importa. O que importa é que foi um fenômeno de vidência, como se uma socieda­de visse, de repente, o que continha de intolerável, e visse também a possibilidade de outra coisa. É um fenômeno co­letivo sob a forma: ‘o possível, se não o sufoco … “‘.15

 

O vidente ou o visionário, segundo Deleuze, não é aquele que antevê o futuro; ao contrário, ele não vê ou não prevê, para si, nenhum futuro. O vidente apreende o intolerável em uma situação; ele tem visões, entendamos, aí, percepções em devir ou perceptos, que colo­cam em xeque as condições usuais da percepção, e que envolvem uma mutação afetiva. A abertura de um novo campo de possíveis está ligada a estas novas condições de percepção: o exprimível de uma situação irrompe, bruscamente.

Qual é a condição de uma tal mutação subjetiva? Se o percepto se distingue de uma simples percepção é porque ele envolve um encontro, uma relação com o fora. Há acontecimento ou vidência quando alguém encontra suas próprias condições de existência, ou as dos outros; aquilo que se chama “lutas”, pelo menos em sua fase ascenden­te, e viva, exprime então, nesse sentido, menos uma tomada de consciência do que a eclosão de uma nova sensibilidade. Em 68, a mutação perceptiva e afetiva consiste em “novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho […]” Admitamos que a subjetividade de cada um de nós seja constituída por uma sínte­se de tais relações: eis que essas relações mudam, ou que se estabele­cem, com os mesmos temas, com os mesmos campos, novas relações. Uma vez que uma relação é sempre exterior, em Deleuze, essas novas relações são também encontros. Encontramos brutalmente o que tínhamos cotidianamente diante dos olhos16.

 

15 “Mai 68 n’a pas eu lieu”.

16 Cf. Cinéma 2: L’image-temps, p. 8. Em um certo registro Deleuze e Guattari podem dizer que mesmo as mulheres devem devir-mulher, é que a feminidade não é um dado de essência mas um acontecimento, ou objeto de um encontro.

 

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O visionário apreende, na situação, sua parte inatualizável, o elemento que ultrapassa a atualidade da situação: o “possível como tal”. O vidente vê o possível e, com isso ascende a uma nova possibilidade de vida que pede para se realizar. Mas ver o possível não con­siste em elaborar um plano: apreende-se a situação atual em sua po­tencialidade, como “campo de possíveis”. Apreendem-se, na situação atual, as potencialidades que ela atualiza, mas que poderiam se atua­lizar de outro modo, já que elas diferem, por natureza, de sua atualização: uma segunda vez, após Bergson, e sob sua inspiração, o dualismo do livre-arbítrio e do determinismo se dissolve em proveito de seu terceiro excluído, o novo. O virtual efetivo (real) substitui o possível (imaginário) a ser realizado.

As potencialidades são puras potências, puros dinamismos, cap­tados independentemente de todas as coordenadas espácio-temporais (assim a linguagem as recolhe na forma verbal do infinitivo: são singularidades de sentido e de acontecimento)l7 No caso, trata-se das diferentes forças ou aptidões presentes em uma situação, chamadas, aliás, a evoluir: aptidões dos homens, do meio, aptidões tecnológicas etc. Sob os modos de existência concretos, percebemos as possibilida­des de vida que nos são oferecidas também como possibilidades afeti­vas: essas próprias possibilidades de vida são as maneiras pelas quais as potencialidades são distribuídas e condensadas, em uma época, em um campo social dado. Uma situação exprime, então, um conjunto aberto de potencialidades que nelas são dispostas, distribuídas, com­binadas, condensadas (conjunto remanejável das possibilidades de vida). Quando apreendemos a situação como puro possível ou em sua potencialidade, avaliamos essas possibilidades de vida (ou esses condensados), que, assim, se redistribuem de maneira diversa. Cabe a nós, a seguir, inventar a combinação concreta ou o agenciamento material, espácio-temporal, que atualizará as novas possibilidades de vida, ao invés de deixá-las sufocar no antigo agenciamento.

Ver de repente essas potencialidades como tais e não atualiza das de uma maneira determinada: eis o acontecimento que arrasta seu sujeito mutante para um devir-revolucionário. A visão é forçosamente fugaz, uma vez que a manifestação de um potencial se confunde com sua dissipação. O que, paradoxalmente, o vidente-revolucionário vê

 

17 Os termos “potencialidade” (ou “potencial”) e “singularidade” são, aqui, equivalentes.

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é a intensidade, em uma imagem intensiva que se esfuma ao se expandír; pois a intensidade se dissipa, tornando-se imagem. Nascimento e morte coincidem nessa imagem que só se pode repetirl8. Só experimentamos, portanto, o possível como tal, ou o possível como potência, em sua queda ou seu esgotamento: trata-se assim, de “esgotar o possível” 19.

Essa percepção do puro possível espaço-tempo especial, despro­vido de coordenadas, puro potencial expondo potências, singularida­de, independentemente de qualquer atualização em estados de coisas ou em meios: o “puro lugar do possível”20. Percebe-se, agora, em que sentido “tudo se torna possível”: as condições para um novo traçado estão dadas, sem que nenhum percurso seja imposto previamente. A criação opera em um espaço de redistribuição geral da singularidade, tentando novos agenciamentos concretos, a partir da injunção de uma nova sensibilidade: o próprio espaço do desejo, povoado não por for­mas e indivíduos, mas por acontecimentos e afetos. A criação, guiada pela exploração afetiva, traça um novo agenciamento espácio-temporal, agenciamento de espaço e de tempo, e não apenas no espaço e no tem­po; a questão, de fato, não é mais a de saber como preencher o espa­ço-tempo comum, mas a de recompor esse espaço-tempo que nos des­dobra, assim como nele nos desdobramos. O agenciamento é um novo recorte, um novo estriamento, uma nova distribuição que implicam operar em um espaço e em um tempo especiais, intensivos, não previa­mente dados. Assim Deleuze invoca “eixos” para definir um novo cam­po de possíveis aberto por maio de 68: o pacifismo, seguindo o eixo Leste-Oeste, um novo gênero de internacionalismo, seguindo o eixo Norte-Sul21. Vetorial, direcional, problemático, o campo de possíveis tem a consistência do movimento, da organização política enquanto movimento. Um movimento revolucionário, a rigor, não realiza uma

 

18 As revoluções são, conseqüentemente, todas elas natimortas, mas não no sentido em que geralmente se diz: a viabilidade precária elo que se dissipa está em sua incessante retomada, e as revoluções morrem por não saberem repetir, ou pela sufocação da repetição (por conta das forças de sujeição que aí denunciam, uma “traição”). Não é por acaso que o tema do traidor (em oposição ao do trapacei­ro) aparece em Deleuze a propósito do devir e da linha de fuga: todo traçado cria­dor é, necessariamente, traidor. Cf. infra.

19 Daí a ambigüidade: vontade que engloba sua própria abolição.

20 Cinéma 1: L’image-mouvement, p. 155.

21 “Mai 68 n’a pas eu lieu”.

 

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imagem, ele faz a imagem, mais ou menos como o personagem de Beckett exclamando: “Está feito, eu fiz a imagem”22. Pode se ver uma revolta? Ou será ela que vê, e se vê? A imagem é fragmentária e se dissipa aqui e ali, adequada ao possível como tal (ao invés do possí­vel, imagem do real)23.

“Tudo é possível”, ou “tudo se torna possível”, na medida em que as partes da situação, tais como o visionário as apreende, não são previamente combinadas: são como acontecimentos puros compon­do problematicamente um único ilcontecimento (a situação), e é pró­prio aos acontecimentos ressoarem uns com os outros, uns nos outros, caoticamente24. Tudo é possível, mas nada ainda está dado, segundo a nova definição do possível, já que ele precisa ser criado: o possível é o que devém, e a potência ou potencialidade merece o nome de possí­vel na medida em que abre o campo de criação (a partir daí tudo está por se fazer). O possível é o virtual: é ele que a direita nega e que a esquerda deforma, representando-o como projeto.

 

  1. EFETUAR OU FECHAR O POSSÍVEL: A ATUALIZAÇÃO

Por possível como tal não se entenderá, portanto, apenas uma possibilidade de vida, no sentido de que seria possível avaliar ou ser afetado de modo diverso (diferenciação do conceito de potência ou de vida, possível como alternativa): as condições estão dadas para que a existência mude, para uma mutação do próprio real. A mutação sub­jetiva é ceqamente real, mas pede sua efetuação, só, pode se efetuar

atualizando-se.

“O possível não preexiste, ele é criado pelo aconteci­mento. É uma questão de vida. O acontecimento cria uma nova existência, produz uma nova subjetividade(novas re­lações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cul­tura, o trabalho… ). Quando uma mutação sodal aparece, não basta tirar-lhe as conseqüências ou os efeitos, seguin-

 

22 L’épuisé, p. 71.

23 Sobre a imagem dissipadora da revolta, sua percepção do intolerável e sua resposta, e sobre o deserto como um espaço qualquer, cf. Critique et clinique, ca­pítulo XIV (sobre Lawrence da Arábia), principalmente as pp. 144-5.

24 Tema constante de Lógica do sentido.

 

do linhas de causalidade econômicas e políticas. É necessá­rio que a sociedade seja capaz de formar agenciamentos coletivos correspondentes à nova subjetividade, de tal ma­neira que ela queira a mutação. É isso uma verdadeira ‘re­conversão.”’25

 

Nesse estágio, a idéia de uma criação de possível se desdobra em dois aspectos complementares. Por um lado, o acontecimento faz emer­gir um novo sentido do intolerável (mutação virtual); por outro lado, esse novo sentido do intolerável pede um ato de criação que responda à mutação, que seja o traçado de uma nova imagem e crie literalmen­te o possível (mutação atualizante). Criar o possível é criar um agen­ciamento espácio-temporal coletivo inédito, que responda à nova pos­sibilidade de vida, ela própria criada pelo acontecimento, ou que seja sua expressão. Uma modificação efetiva da situação não opera no modo da realização de um projeto, pois se trata de inventar as formas sociais concretas que correspondam à nova sensibilidade, e a inspiração só pode vir dessa última. A nova sensibilidade não dispõe de nenhuma imagem concreta que lhe seja adequada: segundo esse ponto de vista, só existe ação criadora, guiada não por uma imagem ou projeto pré­formador do futuro, mas por sinais afetivos que, segundo uma fórmula leitmotiv, “não se assemelham” ao que os atualiza. Ir do virtual ao atual, seguindo um processo imediatamente real; e não do imaginário ao real, seguido uma trajetória imediatamente atual26.

 

25 “Mai 68 n’a pas eu lieu”.

26 Parece que esse esquema de atualização já é o do marxismo, em oposição ao socialismo utópico. Seguindo uma passagem célebre de A ideologia alemã: “O comunismo não é […] nem um estado que deve ser criado, nem um ideal a partir do qual a realidade deverá se regular. Chamamos comunismo o movimento real que abole o estado atual. As condições desse movimento resultam da pressupo­sição que existe atualmente”. (Paris, Soei ales, 1976, p. 33; os grifos são de Marx e Engels.) O comunismo não está, propriamente falando, por vir; ele está, desde já, presente como uma tendência, inscrita nas contradições do sistema atual. O que permite falar do futuro, sem descambar em princípio para o sonho ou para o ar­bitrário, é a possibilidade de decifrá-lo no próprio presente em devir. Mas, desse modo, a estrutura de realização aparece combatida- de modo insuficiente: tem-se sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; o rea­lizável é apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma an­tecipatória de uma meta (essa é a maneira pela qual o futuro continua a se antecipar no presente). Daí por que o operador revolucionário por excelência é a toma­da de consciência, que pressupõe seu próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao futuro a forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade. A concepção historicamente oposta, o espontaneísmo, tampouco se liberta da ante­cipação, uma vez que a espontaneidade nada mais é do que uma percepção incons­ciente da meta. A alternativa permanece prisioneira do esquema de realização, como testemunha o ensaio de Lênin, Que fazer?; a atualização do virtual nunca tem o caráter de criação.

 

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É necessário responder ao acontecimento: “a única chance dos homens está no devir-revolucionário, o único a poder conjurar a ver­gonha ou responder ao intolerável”27. Um imperativo como esse nada tem de voluntarista: não se trata mais de atingir o ser a partir do de­ver-ser, de submeter o real a um julgamento extrínseco, transcenden­te, portanto arbitrário e impotente; a vontade não mais precede o acon­tecimento, a dissensão opera no mundo, não entre o mundo e um outro mundo (a imanência sempre invocada por Deleuze significa que a ex­terioridade deixou de estar além do mundo; a infinidade dos mundos possíveis se decifra, a partir de então, diretamente no mundo, como sinais de sua heterogeneidade). Só podemos responder ao acontecimen­to, porque não podemos viver em um mundo que não mais suporta­mos, na medida em que não mais o suportamos28. Há, aí, uma res­ponsabilidade especial, diversa daquela dos governos e dos sujeitos principais, responsabilidade propriamente revolucionária. Não se é, aqui, responsável por nada, nem por ninguém; não se representa nem um projeto nem os interesses de uma coletividade (já que tais interes­ses estão precisamente mudando, e que não se sabe ainda bem em que sentido). Se é responsável diante do acontecimento.

Duas palavras substituem, desde então, a realização: atualizar e efetuar. Atualizar o virtual, ou efetuar o possível. O Anti-Édipo ter­mina com estas palavras: “Efetuar o processo, não detê-lo, não deixá-lo esvaziar-se, não lhe dar uma meta”, sabendo-se que o processo “já se encontra efetuado enquanto procede”29. L’épuisé diz: “Não se rea­liza mais, embora se efetue”. E mais adiante: “Os personagens se can­sam segundo o número de realizações. Mas o possível está efetuado,

 

27 Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 231.

28 L’anti-CEdipe, p. 408, coloca, a esse respeito, a alternativa entre o des­moronamento psicótico e o devir-revolucionário.

29 O tema aparecia desde o início do livro, p. 11.

 

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independentemente desse número, pelos personagens esgotados e que o esgotam”. O possível enquanto novidade, à diferença: das alternati­vas atuais ou dos projetos de futuro, é objeto de efetuação, não de realização. A efetuação concerne a um ato de criação, inseparável, desde então, de uma atualização30.

Efetuar o possível como tal é afirmar a nova sensibilidade, per­mitir-lhe que se afirme. Eis por que uma sociedade exposta ao acon­tecimento deve ser capaz de criar os agenciamentos correspondentes, “de tal maneira que ela queira a mutação”. Sempre é possível, de fato, negar e combater o que se afirma em nós. Reencontramos ainda aí a fonte viva da clivagem esquerda-direita: seremos capazes de afirmar o que de todo modo nos tornarmos, o que de todo modo se afirma em nós? Não se pode negar o devir e, ao mesmo tempo, querer que as pessoas “devenham”: a direita francesa se empenhou em “fechar o possível”; em seguida, ela começou a deplorar que as pessoas se cris­passem em posições arcaicas e se identificassem com o atual31. Notar-­se-á que a direita adota exatamente a atitude que ela censura, com razão, à esquerda: ela gostaria de poder escolher o futuro, ela gosta­ria de que as pessoas mudassem tudo, obstruindo todas as saídas reais pelas quais elas efetivamente mudam; como a esquerda, ela fica presa à idéia de que a mudança diz respeito a uma tomada de consciên­cia32. Fechar o possível não equivale, de forma alguma, a esgotá-lo: é apoiar violentamente o devir no nada. Dois efeitos podem derivar daí: que as pessoas tenham medo do devir porque ele só deixa vislumbrar o nada, a si mesmo como nada (dobra arcaizante), ou que nada mais tenham para querer senão o nada (dos vândalos aos terroristas). A violência torna-se, então, primeira, fim em si, a vontade nada mais tendo para querer senão o que lhe é proposto, ou seja, nada: vontade de nada.

 

30 Isso não é mais verdade, a rigor, em L’épuisé: justamente porque é o que aproxima e, ao mesmo tempo, separa a política da arte.

31 “Mai 68 n’a pas eu lieu”. As pessoas de Longwy se agarram a seu aço etc.

32 E como os bolcheviques depois de 1917, os liberais hoje se lamentam diante da mentalidade arcaica dos russos (contudo, não se opta mais pela reedu­cação forçada, mas pela forma mais civilizada de uma miséria orquestrada pelo FMI).

 

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Obtemos uma dupla distinção:

  1. a) Realização/atualização, o que há de real ou de efetivo nas lu­tas sendo sempre da ordem de uma criação que opera em função de um campo de possível (no sentido acima definido).
  2. b) Atualização/parte inatualizável, esta última designando o ex­presso das lutas ou do processo de atualização, ou aquilo mesmo que se efetua: a “parte de acontecimento”, “o acontecimento como possí­vel que nem tem mais de se realizar”33.

 

  1. OS CLICHÊS, OU A POLÍTICA APENAS POSSÍVEL

A política começa ou recomeça, portanto, cada vez que uma co­letividade encontra suas próprias condições de existência (ela já está em jogo quando um indivíduo, por sua própria conta, encontra as suas ou as dos outros). Tal requisito só se revela, segundo Deleuze, graças a circunstâncias modernas: era necessário que deixássemos de acredi­tar no possível como instância de realização; era necessário que as alternativas, presentes ou por vir, nos aparecessem como clichê. É a “ruptura dos esquemas sensório-motores”, cujos germes românticos ou pós-românticos desabrocham no pós-guerra (e não após a queda do muro de Berlim). Trata-se então de acabar com os clichês.

O enunciado “esgotar o possível” tem, assim, dois sentidos, con­forme os dois regimes do possível: ascender ao puro possível que a imagem esgota (2) supõe acabar com os clichês (1). Daí o tema de um “nada de vontade”, e de sua força desintegradora34. Bartleby é, a esse respeito, o personagem emblemático da política deleuzeana: o resis­tente por excelência, ou mesmo o sobrevivente (em que coincidem o mínimo e o máximo de vida: sobre-vida, como Nietzsche fala de um superchomem). Bartleby “prefere não”: ele abdica de qualquer prefe­rência em uma dada situação, e recusa, assim, o regime das alternati­vas ou das disjunções exclusivas que asseguram o fechamento da si­tuação. A interioridade de Bartleby pode parecer um mistério (e tal­vez ela seja vazia, estúpida): é apenas o sinal de que os afetos e os efeitos são de uma outra ordem – uma incrível perturbação do entorno, por

 

33 Cf., respectivamente, “Mai 68 n’a pas eu lieu” e L’épuisé, p. 93.

34 Especialmente em Francis Bacon. Logique de la sensation, Paris, La Diffé­rence, 1981, p! 60, após ter precisamente perguntado como se libertar dos clichês, como formar uma figura que não seja um clichê.

 

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contágio. A novela de Melville não diz mais nada sobre isso, e Deleuze só a prolonga para descrever e celebrar a grande expectativa [espérance] americana, que não acaba de modo algum melhor do que Bartleby. Mas o essencial é que essa expectativa adquiriu, localmente, consis­tência, não como esperança [espoir], mas como realidade, no devir ao qual, por um momento, o procurador consente, e que lhe arranca o grito final: “Oh, Bartleby! Oh, humanidade!”. Deleuze reivindica uma leitura literal: isso vale tanto para o comentário como para o texto. Assim, a atitude de Bartleby não é o símbolo ou a alegoria de um mi­litarismo por vir, vislumbrado por entre as brumas: a novela descre­ve, sem mistérios, um processo menos de transformação que de defor­mação social (pouco importa, a esse respeito, que seu herói seja um indivíduo, e não uma massa, já que a rebelião vale mais por seus efei­tos do que por suas razões, efetuando, por assim dizer, a própria ques­tão da comunidade). A novela não é simbólica; ela é exemplar: De­leuze dela extrai um conjunto de categorias políticas.

Favorecer, em si mesmo e no meio, o crescimento de um nada de vontade é resgatar o potencial, a situação como potência de encon­tro. Não se trata de uma última receita voluntarista: ao invés de um procedimento que propicie a visão (o encontro), ver-se-á, aí, seu cor­relato. O nada de vontade é um fato moderno. Nietzsche já o diag­nosticava, nele designando o ponto sem retorno do niilismo e a opor­tunidade de uma reviravolta. Dostoiévski e Melville, no mesmo mo­mento, produzem, cada um por sua própria conta, o personagem cor­respondente: o idiota, que não mais pode responder às urgências de uma situação por ser solicitado por uma questão mais urgente ainda; o original (Bartleby), que preferiria não ter de se pronunciar sobre a situação35. Ambos os personagens têm em comum o fato de terem visto algo que excedia os dados da situação, e que tornava qualquer reação não apenas derrisória e inadequada, mas também intolerável.

O nada de vontade, a desafeição em relação às questões reconhe­cidas, é o resultado de um encontro com o mundo. “Viu-se” não ape­nas a situação, mas também todos os esquemas sensórios-motores que nos ligavam habitualmente ao mundo – viu-se que eles não viam esse mundo, e que não passavam de clichês. “Então uma faculdade lamen­tável se desenvolveu em seu espírito, a de ver a tolice e de não mais

 

35 Assim como os clichês, o tema do idiota, enunciado no final de L’image­mouvement, pp. 257-61, é retomado em L’image-temps, pp. 220 e 229-30.

 

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tolerá-la. “36 Nossas relações habituais com o mundo se revelam con­venções arbitrárias, que nos protegem do mundo e o tornam tolerá­vel para nós: e aí está o compromisso intolerável para com a miséria de toda natureza e os poderes que a alimentam e a propagam. Nossos interesses se inclinam, é claro, sempre para o lado da obediência37. Os esquemas sensório-motores, respostas totalmente prontas a situações de sofrimento sempre singulares e evolutivas, são testemunhas de uma interiorização da repressão (e não é à toa que se diz que a esquerda, com seus c1ichês de palavras e ações – litanias de indignação e de reivindicação, formas estereotipadas de militarismo –, é o auxiliar indispensável da direita). Os c1ichês da luta ou da compaixão parecem chegar, hoje, a seu paroxismo, ainda mais vergonhoso pelo fato de manifestarem uma fantástica capacidade de adaptação ao odioso e a suas causas (vergonha também de nós mesmos, já que esse mundo é o nosso.). Idiota é então aquele que não reage, não por insensibilidade, mas porque “não chega a saber o que todo mundo sabe”, ou “nega modestamente o que se presume que todo mundo reconhece”38.

A época moderna se caracteriza, indubitavelmente, por um défi­cit de vontade, por uma certa “má vontade”, embora o mal de que sofra seja de uma outra natureza. Não acreditando mais no possível, per­demos o gosto e a vontade de realizá-lo: eis nosso cansaço e nosso tédio. Mas se perdemos a fé, é porque nossos esquemas sensório-motores nos aparecem, agora, como são – como clichês. Tudo o que vemos, dize­mos, vivemos, e até mesmo imaginamos e sentimos já está, definitiva­mente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da recognição, a forma do já visto e do já ouvido. Uma distância irônica nos separa de nós mesmos, e não mais acreditamos no que nos acontece, porque nada parece poder acontecer: tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente, do que já está totalmente feito, do preexistente.

É que o real à imagem do possível permanece também confina­do em uma irredutível possibilidade, jamais atingindo o efetivo ou o

 

36 Flaubert, Bouvard et Pécuchet, citado em Différence et répétition, p.198.

37 Sobre as relações entre o esquema sensório-motor, o clichê, o interesse e a obediência, cf. L’image-mouvement, p. 282, e L’image-temps, pp. 31-2.

38 Différence et répétition, p. 171. O idiota, cujos traços Deleuze delineia, parece um misto: sem dúvida nele se reconhece o príncipe Mishkin, mas, princi­palmente, o homem do subsolo e o homem ridículo (em duas novelas célebres). As primeiras linhas do texto sobre Bartleby invocam as novelas de Dostoiévski.

 

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necessário. O clichê tem exatamente a forma do possível, no sentido que Bergson critica: damo-nos um real totalmente acabado, “pré-exis­tente a si mesmo”39. “Já nos demos tudo, todo o real em imagem, já na pseudo-atualidade do possível.”40 O real é, assim, precedido por sua própria imagem enquanto possível, e, assemelhando-se ao possí­vel, acaba confundindo-se com ele. Chega um momento em que não mais percebemos o real senão como já visto, objeto de recognição; não mais o distinguindo do possível, somos invadidos pelos clichês, como por simples possibilidades. O mundo perdeu toda realidade. Uma vez que a revolução pensou-se a si mesma e pensou o povo sob o modo do já presente ou da preexistência a si, foi fatal que os revolucioná­rios se nos tivessem finalmente aparecido como “revolucionários de papel”, e os povos como “povos de papel”. Aquilo que nos ligava ao mundo nada mais era senão clichês, simples possibilidades. Dávamo­nos o mundo previamente, tanto o povo como nós mesmos. Tudo é possível agora, ou seja, confinado na simples possibilidade. Mas, igual­mente, nada é possível: o futuro está pré-formado, inteiramente reba­tido sob a forma do já presente. A necessidade desertou desse mundo, e persistimos em nos mover, sem acreditarmos muito, no horizonte da preferência.

Deleuze sempre fez uma outra análise do possível, paralelamen­te à crítica de inspiração bergsoniana: não nos fundamos em imagem pré-concebida do pensamento, sem, ao mesmo tempo, privar o pen­samento de sua necessidade, condenando-o a se mover, indefinidamen­te, em uma insuperável possibilidade41. Pré-formar o transcendental, rebatê-lo sob uma forma originária, equivale a estabelecer as condi­ções de uma experiência possível, e não real. Decalcar o transcenden­tal sobre o empírico, concebê-lo à imagem do atual ou da representa­ção evacua do campo do pensamento, de saída, o novo ou o aconteci­mento: sabe-se, antecipadamente, que nada acontecerá ao pensamen­to, a não ser uma pseudo-experiência cuja forma possuíamos previa­mente, e que não coloca em questão a imagem que o pensamento fa­zia de si mesmo. Tudo o que pensamos confirma que temos a possibi­lidade de pensar, sem com isso atestar um ato efetivo de pensar. Uma

 

39 Le bergsonisme, Paris, PUF, 1966, p. 100. 40 Idem, p. 10l.

41 Proust et les signes, pp. 41 e 116; Différence et répétition, pp. 93-5 e 173-92.

 

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experiência real implica, ao contrário, a afirmação de uma relação radical com o que ainda não pensamos (segundo a expressão herdada de Heidegger). O mesmo ocorre na política, em que o povo se encon­tra na situação de nunca existir ainda: em ambos os casos, trata-se de afirmar uma relação de exterioridade ou de encontro entre o pensa­mento e o que ele pensa, entre o povo e ele mesmo42.

O que se passa, então, na ação política? Efetividade e necessida­de: eis o que falta à realização. Não apenas o Estado, mas também as estruturas militantes lidam com a “má vontade” popular, que – re­tomando a definição clínica da perversão – se desvia incessantemen­te da meta, e não cessa de não acreditar no que lhe propõem. No en­tanto, a imagem além dos c1ichês aparece cortada de qualquer prolon­gamento motor: a visão pode bem ser momentânea sem com isso dei­xar de ser, de direito, interminável, pois só os imperativos da ação, através da atribuição de um interesse, podiam circunscrever a imagem e dobrá-la às condições de uma experiência possível (o interesse remete a um sujeito estável, e não mutante). A política nasce, enfim, mas dir­se-la o nascimento de um paralítico, deixando apenas a escolha entre um fantasma de ação e uma fascinação petrificada. Em quê o encon­tro é a chance de um devir-revolucionário? De que natureza é o es­querdismo deleuzeano?

Ele consiste, inicialmente, como já dissemos, na recusa de todo voluntarismo. Mas isso não seria nada, ou não seria um esquerdismo, se a defesa do involuntário concluísse pela futilidade de toda ação. É verdade que é uma tendência do esquerdismo, aquela que Lênin ex­plicava pela recusa de qualquer compromisso. Mas o problema esta­ria bem colocado? Para Deleuze, os compromissos são ao mesmo tempo vergonhosos e sempre previamente estabelecidos: são os esquemas, que nos fazem aceitar aquilo mesmo que nos indigna. Além disso, a teoria do bom compromisso se reserva, por natureza, o direito de denunciar o mau compromisso, de preferência em outros: uma aliança impura, uma traição. De forma que a militância “adulta”, não menos que o esquerdismo, tem horror a apreender o acontecimento, necessariamente complicado. Certamente, os temas da linha de fuga, do nada de von­tade, da desafeição (“não se sentir concernido”) testemunham uma

 

42 Cf. os capítulos VII e VIII de Cinéma 2: L’image-temps, mais especialmente p.282.

 

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recusa do compromisso, mas o problema não é mais, de maneira al­guma, o dos meios, uma vez colocado o fim. Deleuze responde ao tri­bunal do bom e do mau compromisso pela distinção entre o traidor e o trapaceiro. Este esconde, temporariamente, sua verdadeira identidade sob uma identidade emprestada: é ele que se pode desencovar, pois ele· só de fato escapa à identificação, impondo-lhe um malogro (durante vários anos se disse “Bom dia, Teodoro” àqueles que se chamavam Teeteto: Kautsky, Plekhanov … ). Mas o traidor não dissimula nenhu­ma identidade: em devir ele escapa de direito a todas as identificações possíveis43. O próprio procedimento se tornou inadequado, ele se con- ‘ fronta com o impossível (o bolchevismo responde por meio de uma cólera judiciária ímpar na história). Lênin só via bons e maus trapa­ceiros, ele justificava suas próprias trapaças; ele não tinha o sentido da traição, ou o do devir-revolucionário. O intolerável é precisamen­te a emergência do “impossível”, a realidade não mais respondendo aos clichês, aos encadeamentos sensório-motores.

“[…] já não se acreditava tanto na possibilidade de agir sobre as situações, ou de reagir às situações e, no entanto, não se está de modo algum passivo, capta-se ou revela-se algo intolerável, insuportável, mesmo na vida mais cotidiana. “44

“Nenhuma reação possível, será que isso quer dizer que tudo vai ser neutro? Não, de modo algum. Haverá situa­ções ópticas, sonoras, puras, que engendrarão modos de com­preensão e de resistência de um tipo inteiramente novo.”45

“É verdade que, no cinema, os personagens de bala­da são pouco concernidos, mesmo pelo que lhes sucede … Mas justamente a fraqueza dos encadeamentos motores, as ligações fracas são aptas a liberar grandes forças de desin­tegração. “46

 

43 “É que traidor, é difícil, é criar. É preciso perder aí sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido” (Dialogues, p. 56).

44 Pourparlers, p. 74.

45 Pourparlers, p. 168.

46 L’image-temps, p. 30.

 

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A ruptura dos esquemas, ou a fuga para fora dos clichês, não conduz, certamente, a um estado de resignação ou de revolta mera­mente interior: resistir se distingue de reagir. Resistir é o próprio de uma vontade derivada do acontecimento, se alimenta do intolerável. O acontecimento é o próprio “potencial revolucionário”, que se es­gota quando rebatido sobre as imagens já feitas (clichês da miséria e da reivindicação).

Chance de uma nova saúde, e não sintoma mórbido, o nada de vontade procede à destituição de um falso problema: o sistema das alternativas. Seu reverso, ou a consistência positiva da política, é a elaboração experimental de novos agenciamentos concretos, e a luta pela afirmação dos direitos correspondentes. A “criatividade”, é bem verdade, tornou-se um clichê, mas por força de um contra-senso: quan­do nada mais se retém senão uma palavra de ordem voluntarista (cada um se esforçando, então, para produzir seus próprios clichês, para viver sua própria existência como clichê: realização de fantasmas etc.). O traidor cria forçado, sob o império de um amor ou de um encontro, mas o trapaceiro só pode se esforçar para criar. A experimentação, segundo Deleuze e Guattari, nada tem a ver com esses jogos de exis­tência em que a parte do acaso é bastante exígua. Tateante, discreta, em parte inconsciente, duplicada pelas lutas coletivas por direitos inédi­tos que permitam sua efetuação, ela se confunde com a própria existên­cia, quando esta lida com uma remanejamento profundo de suas con­dições de percepção, e com os imperativos afetivos que dele resultam.

Se não mais se pode falar de ação no sentido tradicional do ter­mo, é porque a situação se tornou literalmente impossível. Dizê-la incontrolável é, por vezes, um álibi infame. lncontrolável foi o que ela não se tornou, qualquer que seja a complexidade moderna dos meca­nismos sócio-econômicos; ela o é por direito, na medida em que o devir não obedece a nenhum clichê. Quando nossos liames sensório-moto­res com o mundo se revelam clichês, a situação perde seu caráter glo­balou totalizável, e explode em processos singulares. Ela não é mais atravessada por uma contradição maior, última figura da unidade para além da divergência e do conflito, mas por linhas de fuga locais, em todos os níveis, que apenas comunicam, eventualmente, de singular para singular, de minoria para minoria (crianças, operários, mulhe­res, negros, camponeses, prisioneiros… ).

A única utopia a que Deleuze se entregou, baseada em solidarieda­des passageiras nas décadas de 60 e 70, concerne à emergência de uma

 

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“consciência universal minoritária”. O que a justificava é que o devir de uma minoria interessa, por direito, todo mundo, “concerne ao ho­mem por inteiro”, sendo sempre uma maneira singular de problemati­zar a existência47. As pessoas em devir não são concernidas pelas alter­nativas em curso: só lhes importa aquilo que encontram por sua própria conta, e aquilo que os outros também encontram, mesmo em contextos afastados dos deles, “estranhamente indiferentes e, no entanto, mui­to bem informados”48. Não é uma expectativa [espérance] semelhan­te que ressoa no final do comentário de Bartleby, a de uma “comuni­dade de celibatários” comparável a um “muro de pedras livres”49? ‘

De qualquer modo, só retomamos a efetividade da política des­fazendo-nos da miragem representada pela tomada do poder e pela transformação extrínseca, demiúrgica, da sociedade. Ser de esquerda, a partir de então, significa acompanhar as linhas de fuga em todos os lugares em que elas são pressentidas; tentar, custe o que custar, conectá­Ias àquelas que nos abalam; favorecer assim a efetuação do possível em todos os lugares em que emerge. O intelectual perde seu papel de indicador ou de consciência: ele não propõe nada, não está à frente de ninguém. Sua demanda e sua atenção referem-se ao involuntário, ou à emergência de novos campos de possíveis.

A doença do clichê nos deixa em um meio termo angustiante: não mais acreditamos em um outro mundo, mas ainda não acreditamos neste mundo, nas chances de encontro com ele, na chance que repre­senta um encontro com ele50. Estamos em vias de acabar com o pos­sível, sem percebermos que é a condição de um possível efetivo, por não termos perdido o hábito de associar o possível à imagem pré-con­cebida de um mundo melhor a ser realizado. É esgotando o possível que o criamos: a contradição aparente, como se percebe agora, não

 

47 Mille plateaux, pp. 133-4 e 586-91, devir-minoritário e potência dé pro­blematização.

48 “Mai, 68 n’a pas eu lieu”.

49 Critique et clinique, pp. 108-14. Essa exigência de um conjunto de liga­ções laterais, federativas, e não hierárquicas e representativas, constitutivas de um movimento revolucionário “de múltiplos focos”, anima o conjunto das observa­ções de Deleuze no diálogo com Foucault, L’Arc, n° 49 (sobre os intelectuais e o poder).

50 Cinéma 2: L’image-temps, pp. 220-5.

 

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era senão a sombra negativa de uma coerência paradoxal (porque ela inclui o tempo).

“[…] Acreditar, não em um outro mundo, mas no lia­me entre o homem e o mundo, no amor ou na vida, acredi­tar nisso como no impossível, no impensável, que, no en­tanto, só pode ser pensado: ‘o possível, senão sufoco’, “51

 

Alcançar o devir para além do possível, tal era a direção de De­leuze. Chegar à identidade do possível e do necessário no lugar onde a vontade nada mais é senão um falso problema, ou nasce do próprio acontecimento, como sua auto-afirmação; enquanto o possível mudou de estatuto e recuperou sua figura autêntica, a figura positiva e virtual do ainda não, ao invés da projeção irreal, no futuro, do já presente. Uma percepção estranha do mundo, dizia Deleuze, em verdade, total­mente espinosana, quando se consegue respirar sem oxigênio, tendo compreendido, em última análise, que era com ele que nos sufocáva­mos. “Não há mais possível: um espinosismo obstinado”. Ou ainda: “O ser vivo vendo é Espinosa sob as vestes do revolucionário napo­litano”52. Então pode-se realmente dizer que Deleuze é um perverso, e seu esquerdismo, uma admirável perversão. Afinal:

“[…] O mundo perverso é um mundo em que a cate­goria do necessário substituiu completamente a do possível: estranho espinosismo em que o oxigênio falta, em proveito de uma energia mais elementar e de uma ar rarefeito (o céu­-necessidade).”53

 

Tradução de Maria Cristina Franco Ferraz

51 Idem, p. 221.

52 L’anti-CEdipe, p. 35, logo após a passagem sobre o possível citada acima.

53 Logique du sens, p. 372.

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