O QUE É O ATO DE CRIAÇÃO? Gilles Deleuze (ABAIXO TRANSCRIÇÃO EM PORTUGUÊS DA FILMAGEM DE 1987)

Este texto é a retranscrição da conferência filmada, pronunciada na FEMIS [Fondation Européenne pour les Métiers de l’Image et du Son] no dia 17 de março de 1987, a convite de Jean Narboni e transmitida por FR3/Océaniques no dia 18 de maio de 1989. Charles Tesson, com a permissão de Deleuze, efetuou a transcrição parcial do texto, publicada sob o título “Avoir une idée en cinéma”, no quadro de uma homenagem ao cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Aigremont, Éditions Antigone, 1989, pp. 63-77). A versão integral da conferência foi publicada pela primeira vez em Trafic, nº 27, outono de 1998.

O que é o ato de criação? [1987]

Eu gostaria, também eu, de colocar questões. Colocá-las pra vocês e pra mim mesmo. Seriam do seguinte gênero: o que vocês fazem, rigorosamente, vocês que fazem cinema? E eu, o que faço, rigorosamente, quando faço ou espero fazer filosofia?

Eu poderia colocar a questão de outro jeito: o que é ter uma ideia no cinema? Fazendo ou querendo fazer cinema, o que significa ter uma ideia? O que está se passando quando se diz: “opa, tenho uma ideia”? É que, por um lado, todo mundo sabe que ter uma ideia é um acontecimento que ocorre raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, por outro lado, ter uma ideia não é algo de geral. Não se tem uma ideia em geral. Uma ideia – assim como aquele que tem a ideia –, uma ideia já está consagrada a este ou àquele domínio. É tanto uma ideia em pintura, tanto uma ideia em romance, tanto uma ideia em filosofia, tanto uma ideia em ciência. E não é evidentemente o mesmo, quem pode ter tudo isso. É preciso tratar as ideias como potenciais já engajados neste ou naquele modo de expressão e inseparáveis do modo de expressão, tanto que não posso dizer que tenho uma ideia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma ideia em tal domínio, uma ideia em cinema, ou então uma ideia em filosofia.

[292] Torno, pois, a partir do princípio de que faço filosofia e de que vocês fazem cinema. Isso uma vez admitido, seria fácil demais dizer que a filosofia, pronta pra refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? É estúpido. A filosofia não é feita pra refletir sobre seja lá o que for. Tratando a filosofia como uma potência de “refletir-sobre”, tem-se o ar de estar dando muito a ela, quando de fato tudo lhe é retirado, pois ninguém tem necessidade da filosofia ara refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas ou os críticos de cinema, ou então aqueles que amam o cinema. Tais pessoas não têm necessidade da filosofia pra refletir sobre o cinema. A ideia de que os matemáticos teriam necessidade da filosofia ara refletir sobre a matemática é uma ideia cômica. Se a filosofia tivesse de refletir sobre alguma coisa, razão nenhuma teria ela para existir. Se a filosofia existe, é porque tem seu próprio conteúdo.

É bem simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar, ou então, inventar conceitos. E os conceitos não existem já totalmente feitos numa espécie de céu, onde esperariam que um filósofo os apreendesse. É preciso fabricar os conceitos. Certamente, não é de qualquer jeito que se os fabrica. Não é que um dia eu vá dizer: “opa, vou inventar esse conceito”, assim como um pintor não vai chegar dizendo: “opa, vou fazer um quadro desse jeito”, ou um cineasta: “opa, vou fazer este filme!”. É preciso haver uma necessidade, tanto em filosofia quanto alhures, caso contrário nada há. Um criador não é um padre que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que ele tem absolutamente necessidade. Acontece que essa necessidade – que é uma coisa bem complexa, caso exista – faz com que um filósofo (eu pelo menos sei do quê ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos e não a se ocupar em refletir, mesmo que seja sobre o cinema.

Digo que faço filosofia, ou seja, tento inventar conceitos. Se digo, vocês que fazem cinema, o que é que vocês fazem? O que vocês inventam não são conceitos – não é assunto de vocês –, mas blocos de movimentos/duração. Caso se fabrique um bloco de movimentos/duração, talvez se esteja fazendo cinema. Não se trata [293] de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta história com blocos de movimentos/duração. A pintura inventa todo um outro tipo de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimentos/duração, mas blocos linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, tão particulares quanto. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criativa. Não vejo tanta oposição entre as ciências e as artes.

Se pergunto a um cientista o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, mas não é com isso que se define uma atividade científica enquanto tal –, mas cria tanto quanto um artista. Um cientista, isso não é complicado, é alguém que inventa ou cria funções. E há somente ele para tanto. Um cientista enquanto cientista não tem nada a fazer com conceitos. É mesmo por conta disso – e felizmente – que há filosofia. Em contrapartida, há uma coisa que apenas um cientista sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Há função desde que sejam regradamente postos em correspondência dois conjuntos, pelo menos. A noção de base da ciência – e não desde ontem, mas desde há muito tempo – é a noção de conjunto. Um conjunto nada tem a ver com um conceito. Desde que você ponha conjuntos em correlação regrada, você obtém funções e pode dizer: “faço ciência”.

Se qualquer um pode falar a qualquer um, se um cineasta pode falar a um homem de ciência, um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e inversamente, isso se dá na medida e em função da atividade criativa de cada um. Não se trata de falar da criação – a criação, na verdade, é algo bem solitário –, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer pra alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem por sua atividade criativa, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos duração/movimentos, invenções de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam juntas, é no nível daquilo que nunca se desprende por si mesmo, mas [294] que está como que engajado em toda disciplina criativa, a saber, a constituição dos espaços-tempo.

Em Bresson – isso é bem conhecido –, raramente existem espaços inteiros. São espaços que se pode chamar de desconectados [déconectés]. Por exemplo, há um canto, o canto de uma cela. Depois, vê-se um outro canto, ou então uma região da parede. Tudo se passa como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos pedaços cuja conexão [connexion] não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto. Não estou dizendo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Todavia, o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Ele foi, sem dúvida, retomado em seguida, serviu de uma maneira muito criativa a outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a fazer o espaço com pequenos pedaços desconectados [déconnectés], ou seja, pequenos pedaços cuja conexão [connexion] não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, há espaços-tempo. Apenas isso. Os blocos de duração/movimento de Bresson vão tender para esse tipo de espaço, entre outros.

A questão então é a seguinte: esses pequenos pedaços de espaço visual, cuja conexão [connexion] não está dada de antemão, são conectados [connectés] pelo quê? Pela mão. Isso não é teoria nem filosofia. Não é deste jeito que isso é deduzido. Estou dizendo: o tipo de espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão na imagem. O acordo das beiradas do espaço bressoniano – pelo próprio fato de que são beiradas, pedaços desconectados [déconnectés] de espaço – só pode ser um acordo manual. Donde o enaltecimento da mão em todo o cinema dele. Por isso, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe, pois, como característica própria a esse criador, a esse espaço, o papel da mão, que sai diretamente dele. Há tão somente a mão que possa efetivamente operar conexões [connexions] de uma parte à outra do espaço. E Bresson, sem dúvida, é o maior cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não simplesmente porque sabe, em imagens, tomar as mãos de maneira admirável. Se ele sabe, em imagens, tomar as mãos de maneira admirável, é porque tem necessidade delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tenha absolutamente necessidade.

[295] Uma vez mais, ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma ideia alhures. Contudo, há ideias em cinema que poderiam valer também em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romance, por exemplo. De modo algum, porém, teriam a mesma feição. Além disso, há ideias em cinema que só podem ser cinematográficas. Ainda assim. Mesmo que se trate de ideias em cinema que poderiam valer em romance, elas já estão engajadas num processo cinematográfico, que faz com que estejam já de antemão consagradas. É uma maneira de colocar uma questão que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha verdadeiramente vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-me evidente que isso se dê porque ele tem ideias em cinema que ressoam com o que o romance apresenta como ideias em romance. E grandes encontros são então frequentemente feitos. Não estou colocando o problema do cineasta que adapta um romance medíocre, e isso não exclui que o filme seja genial; seria interessante tratar esse problema. Mas coloco uma questão diferente: o que se passa quando o romance é um grande romance e o que essa afinidade revela, pela qual alguém tem em cinema uma ideia que corresponde ao que a ideia era em romance?

Um dos mais belos casos é o de Kurosawa. Por que ele se encontra em familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que foi preciso um japonês para estar em tamanha familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Eu proporia uma resposta e acredito que ela também toque um pouco a filosofia. Entre os personagens de Dostoiévski se produz com muita frequência algo bastante curioso, que pode ficar como um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai, desce para a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, está me pedindo socorro. Vou correr, ela morrerá se eu não for até lá.” Ele desce sua escada e encontra um amigo, ou então vê um cão atropelado, prestes a morrer e ele esquece, ele esquece completamente que Tânia o está esperando. Põe-se a falar, cruza com outro camarada, vai tomar chá na casa dele e, de repente, diz mais uma vez: “Tânia me espera, preciso ir até lá.” O que isso quer dizer? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente tomados por urgências e, ao mesmo tempo em que estão tomados por estas urgências, que são questões de vida ou de morte, eles [296] sabem que há uma questão ainda mais urgente – e não sabem qual é. E é isso que os interrompe. Tudo se passa como se, na pior urgência – “Tem o fogo, eu preciso sair daqui” –, elos dissessem consigo: “Não, há algo mais urgente. Não vou me mexer enquanto não souber o que é.” É o Idiota. É a fórmula do Idiota: “Quer saber, há um problema mais profundo. Qual problema… não vejo tão bem qual seria. Mas me deixem. Que tudo queime… é preciso encontrar esse problema mais urgente.” Não é de Dostoiévski que Kurosawa aprende isso. Todos s personagens de Kurosawa são desse jeito. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, ao menos é porque ele pode dizer: “Tenho um negócio em comum com ele, um problema comum, este daqui.” Os personagens de Kurosawa estão em situações impossíveis, mas atenção, há um problema mais urgente. E é preciso que saibam que problema é esse. Viver talvez seja um dos filmes de Kurosawa que vai mais longe neste sentido. Mas todos os seus filmes vão neste sentido. Os sete samurais, por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende disso, é necessariamente um espaço oval, fustigado pela chuva. Em Os sete samurais, os personagens são tomados por uma situação de urgência – aceitaram defender o vilarejo – e, de uma ponta à outra do filme, são trabalhados por uma questão mais profunda, que será dita no fim, pelo chefe dos samurais, quando estão indo embora: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em geral, mas naquela época?” Alguém que não é bom pra mais nada. Os senhores já não precisam mais deles e os camponeses logo saberão se defender sozinhos. Durante todo o filme, apesar da urgência da situação, os samurais são assombrados por essa questão, digna do Idiota: nós outros, samurais, o que somos?

Uma ideia em cinema é desse tipo, uma vez que já está engajada num processo cinematográfico. Aí, vocês podem dizer: “Tenho uma ideia”, mesmo que a tomem emprestada de Dostoiévski.

Uma ideia é muito simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que talvez se possa tirar de toda ideia um conceito. Penso em Minelli, que tem uma ideia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples – dá pra dizê-la – e está engajada num processo cinematográfico, [297] que é a obra de Minelli. A grande ideia de Minelli sobre o sonho é que este diz respeito, antes de tudo, àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que diria respeito a eles? Porque, havendo o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é um sempre devorador, sonho que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é muito perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando é a jovem mais graciosa, é uma terrível devoradora, não por sua alma mas pelos seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se forem pegos no sonho do outro, estão ferrados.

Uma ideia cinematográfica, por exemplo, é a famosa dissociação ver-falar, num cinema relativamente recente, seja – pego os casos mais comuns – Syberberg, os Straubii, Marguerite Duras. O que há de comum e em quê é uma ideia propriamente cinematográfica, isso de fazer uma disjunção do visual e do sonoro? Por que não pode ser feito no teatro? Em todo caso, pode ser feito, mas então, se for feito no teatro, salvo exceção, e se o teatro encontra meios para tanto, poderá ser dito que o teatro tomou isso emprestado do cinema. O que não é forçosamente mal, mas é uma ideia a tal ponto cinematográfica, assegurar a disjunção do ver e do falar, do visual e do sonoro, que isso responderia à questão de saber o que, por exemplo, é uma ideia em cinema.

Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, fazem com que vejamos outra coisa. E, enfim, aquilo que nos é falado está sob o que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é muito importante. É aqui que sentimos que o teatro não poderia seguir. O teatro poderia assumir as duas primeiras proposições: falam de algo para nós e nos fazem ver outra coisa. Mas que aquilo de que nos falam se ponha, ao mesmo tempo, sob o que nos fazem ver – e é necessário, senão as duas primeiras operações não teriam sentido algum e pouco interesse –, pode-se dizer de outra maneira: a palavra se eleva no ar, ao mesmo tempo em que a terra que se vê afunda-se cada vez mais. Ou então, ao mesmo tempo em que a palavra se eleva no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se sob a terra.

[298] O que é isso, se existe apenas o cinema que possa fazê-lo? Não estou dizendo que ele deva fazê-lo, mas que o cinema o tenha feito duas ou três vezes, posso dizer simplesmente que são grandes cineastas os que tiveram essa ideia. Eis uma ideia cinematográfica. É prodigioso, pois assegura ao nível do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que faz, de pronto, com que o cinema ecoe junto a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação dos elementos, no cinema, a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo que estou dizendo, isso não suprime uma história. A história sempre está lá, mas o que nos espanta é o porquê da história ser tão interessante, senão porque há tudo aquilo por trás e junto dela. Nesse ciclo que acabo de definir bem rapidamente – a voz se eleva ao mesmo tempo em que aquilo de que a voz fala afunda-se sob a terra –, vocês reconheceram a maior parte dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos nos Straub. O que se vê é unicamente a terra deserta, mas essa terra deserta está como que pesada daquilo que há por baixo. E vocês me dirão: mas disso que há por baixo, que sabemos disso? É justamente aquilo de que a voz nos fala. Como se a terra empenasse daquilo que a voz nos diz e que vem tomar lugar sob a terra, naquele momento, e o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm aos olhos, o menor buraco naquela terra, ganha todo seu sentido.

Digo a mim mesmo que ter uma ideia, em todo caso, não é da ordem da comunicação. É nisso que eu estava querendo chegar. Tudo de que falamos é irredutível a qualquer comunicação. Isso não é grave. Quer dizer o quê? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação. Ora, uma informação, o que é? Não é tão complicado, todo mundo sabe, uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando lhes informam, estão dizendo aquilo em que vocês supostamente devem acreditar. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações de polícia são chamadas, com razão, de comunicados. Comunicam-nos da informação, dizem-nos aquilo que [299] supostamente estamos aptos a acreditar, ou que devemos acreditar, ou a que somos obrigados a acreditar. Nem mesmo acreditar, mas fazer como que se acreditássemos. Não nos exigem acreditar, mas que nos comportemos como se acreditássemos. É isso a informação, a comunicação e, independentemente dessas palavras de ordem e de sua transmissão, não há informação, não há comunicação. O que dá no mesmo dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente e nos diz respeito particularmente, hoje em dia.

É verdade que entramos numa sociedade que pode ser chamada de sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault havia analisado dois tipos de sociedade bastante próximas de nós. A umas, ele chamava sociedades de soberania, a outras, sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania a uma sociedade disciplinar, ele a fazia coincidir com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se – as análises de Foucault ficaram, com razão, célebres – pela constituição de meios de confinamento: prisões, escolas, ateliês, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. Tal análise engendrou ambiguidades dentre certos leitores de Foucault, pois acreditaram que se tratava de seu último pensamento. É evidente que não. Foucault jamais acreditou e ele disse muito claramente que essas sociedades disciplinares não eram eternas. Mais do que isso, ele evidentemente pensava que entrávamos num tipo novo de sociedade. Seguramente, existe toda sorte de restos de sociedades disciplinares, a ficarem por anos e anos, mas já sabemos que estamos em sociedades de um outro tipo, às quais seria preciso chamar, de acordo com a palavra proposta por Burroughs – e Foucault tinha uma admiração bem viva por ele –, sociedades de controle. Entramos em sociedades de controle que se definem muito diferentemente das sociedades de disciplina. Os que velam pelo nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de confinamento. Isso tudo, as prisões, as escolas, os hospitais, já são locais permanentes de discussão. Não seria melhor expandir os atendimentos a domicílio? Sim, esse é sem dúvida o futuro. Os ateliês, as fábricas, isso tudo começa a ceder em todos os cantos. Não seria melhor os regimes de terceirização e o trabalho a domicílio? Não haveriam outros meios para punir as pessoas, tirando as prisões? As sociedades de controle não mais passarão por [300] meios de confinamento. Até mesmo a escola. É realmente preciso vigiar os temas que nascem, que serão desenvolvidos em quarenta ou cinquenta anos e que nos explicam que o surpreendente seria fazer, ao mesmo tempo, a escola e a profissão. Será interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão através da formação permanente, que é nosso futuro e que não mais implicará forçosamente o reagrupamento de escolares num meio de confinamento. Um controle não é uma disciplina. Com uma auto-estrada você não confina as pessoas, mas, fazendo auto-estradas, você multiplica os meios de controle. Não estou dizendo que seja este o único objetivo da auto-estrada, mas as pessoas podem rodar ao infinito e “livremente” sem de modo algum estarem confinadas, ainda assim estando perfeitamente controladas. Este é o nosso futuro.

Estabeleçamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa sociedade dada. O que a obra de arte pode fazer com isso? Não falemos de obra de arte, mas pelo menos digamos que haja contra-informação. Há países de ditadura onde, em condições particularmente duras e cruéis, existe contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha, e que eram os primeiros a nos ensinarem que havia campos de extermínio, faziam contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação jamais incomodou Hitler. Exceto num caso. Qual é o caso? Isso que é importante. A única resposta seria que a contra-informação apenas devém efetivamente eficaz quando ela é – e ela o é por natureza – ou devém ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra-informação só é efetiva quando devém um ato de resistência.

Qual a conexão da obra de arte com a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte nada tem a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a menor informação. Em contrapartida, há uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Aí, sim. Ela tem algo a fazer com a informação e com a comunicação, a título de ato de resistência. Que conexão misteriosa é essa entre uma [301] obra de arte e um ato de resistência, enquanto que os homens que resistem não têm nem o tempo nem, às vezes, a cultura, ambos necessários para se ter a menor conexão com a arte? Não sei. Malraux desenvolve um belo conceito filosófico, ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao início: o que se faz quando se faz filosofia? Inventa-se conceitos. Taí, acho que isto seja a base de um belo conceito. Considerem… o que resiste à morte? Basta ver uma estatueta de três mil anos antes de nossa era para achar que a resposta de Malraux é, na verdade, uma boa resposta. Poderíamos então dizer, não tão bem quanto ele, do ponto de vista que nos ocupa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resista. Daí a conexão tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora, de uma certa maneira, ela seja um. Toda obra de arte não é um ato de resistência e, no entanto, de uma certa maneira, ela o é.

Peguem o caso, por exemplos, dos Straub, quando eles operam aquela disjunção voz sonora e imagem visual, a qual tomam da seguinte maneira: a voz se eleva, se eleva, se eleva e aquilo de que ela nos fala passa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tem conexão direta alguma com a imagem sonora. Ora, que ato de fala é esse que se eleva no ar enquanto seu objeto passa sob a terra? Resistência. Ato de resistência. E, em toda obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De Moisés ao último Kafka, passando por – não cito na ordem – Não reconciliados ou Bachiii. O ato de fala de Bach… É sua música o ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado. Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito em Wozzeck, há um grito em Bach: “fora! fora! vá embora, não quero ver você!” Quando os Straub valorizam esse grito, o de Bach ou da velha esquizofrênica de Não reconciliados, tudo isso deve dar conta de um duplo aspecto. O ato de resistência tem duas faces. Ele é humano e é também o ato da arte. Apenas o ato de resistência resiste à morte, quer sob a forma de uma obra de arte, quer sob a forma de uma luta dos homens.

Que conexão há entre a luta dos homens e a obra de arte? A mais estreita conexão e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando dizia: “Quer saber, o povo está faltando”. O povo está faltando e, ao mesmo tempo, não está. O povo está faltando, isso quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe não é e nunca será clara. Não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

 

 

 

Rodapé da tradução

 

 

ii : Jean-Marie Straub (1933-…) e Danièle Huillet (1936-2006).

iii : Trata-se dos seguintes filmes (em ordem cronológica): Nicht versöhnt, oder Es hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht [“Não reconciliados, ou Apenas a violência ajuda onde reina a violência”] (1965); Chronik der Anna Magdalena Bach [“Crônica de Anna Magdalena Bach”] (1968); Moses und Aron [“Moisés e Arão”] (1973); Klassenverhältnisse [“Relações de classe”] (1984), baseado na novela Amerika de Kafka.

 

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